domingo, 31 de janeiro de 2010

GENTE QUE A GENTE CONHECE




Ao longo da vida conhecemos quantas pessoas? Muitas mesmo!
Algumas caras passaram. Quantas esquecemos? Nomes que fechamos à chave? Quantas ficam?
Das que ficam quantas se perdem?
As pessoas passam a ser raras.

Às vezes vimos passar as nossas memórias nos sonhos, a bailar umas vezes outras, como que penduradas num fio feito por qualquer aranha artista.

E conforme desfilam as boas ou más assim acorda o nosso humor matinal.

Passam às avessas, da frente para trás, desdobradas entre luzes a tremular ao longe, mas também são capazes de atravessar a lua para sempre.
Quase sempre acordamos por completo, embora em algumas circunstâncias gostássemos de permanecer no sonho.
O sonho essa irrealidade tão real!
Quando acordamos e passamos um certificado a algumas delas é que não há remédio para o silêncio que se faz de seguida.
Onde está aquela e aqueloutra pessoa que trabalhou connosco no ano tal? Que será feito dos filhos de que falava com ternura? E aquele apetite notável que tinha sempre cicrana que era capaz de comer não importa o quê? E os problemas de coração continuarão a atormentar, como se chamava, era João, agora me lembro.
Lembramo-nos de X que já no liceu falava sempre que alguém falava, não se importando com o que diziam.
Fantástica a doçura da voz da Isabel, parecia um poema de amor, mesmo nas discussões.
Sonhos precisos estes em que nos aparecem as pessoas tal e qual as conhecemos.
Apareceram os que se julgavam ter esquecido. Apareceram todas, perfiladas, como que a apresentarem-se.
Perguntavam porquê. Porque tinha sido assim, cada uma ido para o seu lado e nunca mais souberam nada uns dos outros, porque é que ficamos amigos de uns e indiferentes a outros?

O sonho tropeçava em nós, quase sufocados, resolvemos regressar ao lugar onde estavamos e o mais interessante talvez, é que surgiam cenas neste écran onírico que tinham sido moderadas nos nossos ressentimentos ao longo de anos.

Acordamos, meditamos sobre as armadilhas que o destino tece.
A vida exige-nos a manutenção do bom humor, mas não se importa com os custos disso.
Mas o sonho não permitia muitas tréguas e continua a reinar.
Revimos os projectos que ficaram por cumprir (muitos).

Desta vez, éramos (no sonho) um médico ignorante a entreter os seus pacientes com três ou quatro remédios para nos esquivarmos de alguns trabalhos com a maior elegância.
Continuamos a flutuar docemente pelo espaço, um pouco aturdidos porque o tempo ía e vinha, não era cronológico, aparecia o futuro antes do passado e o presente ora vinha depois ora antes ou no meio.
Nestes horizontes oníricos, a realidade era terrivelmente honesta.
Víamos claramente que abandonamos, esquecemos, pusemos de lado, pessoas que se calhar, não eram para abandonar e fomos declinados por outras de quem gostávamos.
Fizemos demasiadas "arrumações" e queimamos "coisas" que se calhar não eram para queimar.
As memórias desenrugavam-se, surgiam claras e o futuro estava ali como que à superfície do mar e começava a voar, em flocos brancos.
Não havia regras nos nossos sonhos. Alguns deles eram recorrentes é verdade, como aquele em que voávamos sobre as escadas sem as descer.
Não queríamos acordar, queríamos perguntar ao sonho porquê, porque era assim. Tanta gente que nos escapa como a areia da mão quando estamos na praia da nossa infância.

Porque ficamos com certas pessoas, porque quando envelhecemos já não chamamos amigos a todos, porque eram tantos e agora são tão poucos? Porque as visitas se tornam tão raras?
Porque é que o cérebro voou para este assunto?

Ficamos então naquele interim, naquele limbo em que não estamos verdadeiramente acordados nem a sonhar, a tentar dar a resposta, mas esta não saía e, muito menos, ordenada como sempre exigíamos.
Uma certeza porém tínhamos, antes e depois do sonho, éramos inquilinos. Inquilinos do sonho, da vida, das circunstâncias, mas a verdade é que já muitas vezes tínhamos visto o arco-íris e continuávamos a vê-lo a atravessar a lua.

sábado, 30 de janeiro de 2010

FALAR DE FUTURO




Há quem fale do futuro como se de passado se tratasse, cheio de certezas.
Há ainda quem só se interesse pelo futuro, dizem que o passado não interessa e que o presente é passado também.
No meu caso sempre que tento abordar o futuro recuo porque não sei.
Que dificuldades tenho a falar de futuro... Tempos houve que apenas trabalhava para o futuro, embora não o abordasse, sempre o respeitei. É verdade, sempre me inspirou respeito.
Quando começo o falar do futuro, regresso logo ao passado, esse sim, verdadeiramente meu conhecido.
Por tantas dificuldades na abordagem do tema tenho-me visto, ultimamente, com algumas tibiezas no regresso ao passado, encontrando-o por vezes separado de mim, não sei se apenas pela mudança de costumes ou por ter tendência a emprestar algumas características que ele não teve.
O futuro apresenta-se tão alto que não lhe chego, esforço-me por o espreitar mas não consigo.
Sinto que o futuro me trai, me transpõe para o passado, no entanto sempre que penso no futuro, sinto como que uma felicidade dramática,uma coragem pelo que é absoluto.
O futuro esconde-se, está sempre por trás de, sim, porque ele não cai do céu aos trambolhões, é filho do passado e do presente, mas é abstracto, sendo que aqui esta palavra significa tudo aquilo que não percebemos.
Mesmo que ligue os meus acumuladores de sensação e coloque os óculos de ver muito longe, não consigo visioná-lo.
Vejo o Inverno lá em baixo, continuo atravessando o Outono, mas o futuro...
O futuro esmaga-me!
Falar sobre o futuro faz-me lembrar quando se anda atrás duma mosca e ela voa, voa, embora essa ainda se mostre.
Fazemos prospecções, projecções, declinações mas "avistar" o futuro só mesmo os bruxos, esses eleitos!
Mas para que perseguimos o futuro?
Será um espécie de necessidade vital?
Às vezes brincamos ao futuro. Limpamos tudo, fugimos de ouvir e ficamos a pensar sem obrigação e solitariamente, envergonhadamente,desenhamos o FUTURO com uma força irresistível, com alma, poderoso. Esse, esse não o partilhamos com ninguém, é só nosso, bem apresentado, bonito, bem cheiroso, sempre jovem e cheio de vitalidade. É o nosso querido futuro. Para esse e com esse não temos rede no pensamento, não há dramas, é tu cá tu lá.
Às vezes penso que estou no futuro já, será sonho ou realidade?

terça-feira, 26 de janeiro de 2010

ELE É ALGUÉM




Ouve-se:
É um homem com sorte. Conhece gente importante, veste bem, frequenta bons restaurantes e conduz-se em bons carros, além de beber bons vinhos e nem sempre usar o mesmo relógio.
Deve ter uma caixa, pelo menos, de relógios de colecção e de quando em vez coloca um, dá-lhe prazer em especial que os outros se foquem num pequeno objecto que teima em que faça parte da sua pele.
São os extraídos dos contos de princípes. Usam normalmente, botões de punho e se assemelham a astros de cinema, sejam feios ou bonitos, baixos ou altos. Às vezes escrevem livros com 3 ou mais edições e dão conferências para ensinar os principiantes a ter sucesso.
Falo de personagens que estão metidas no drama, no drama dos despedimentos colectivos, no drama da falência dos bancos.
Cheios de pose, cometem actos criminosos discretos. 'Não é que eles queiram cometê-los mas são obrigados a isso, não foram eles que criaram a crise, eles apenas querem manter os seus relógios na caixinha, a sua colecção de botões de punho que nem sempre usam, não se vá perder algum, o seu gosto pelos vinhos tintos raros e manter o alfaiate de há anos, claro, e... trocar de carro familiar de 2 em 2 anos, no fundo, apenas e tão só, manter o seu estatuto de gente bem instalada, pois até aí chegar não foi fácil que a vida não é feita de rosas e mesmo as rosas têm espinhos'.
São protagonistas do filme da recessão, mas recusam a participar nas festas de despedimento colectivo.
Eles apenas são assalariados convidados, em final de carreira, com atitudes e voz humanas e suaves como convém, para chamarem os trabalhadores e ainda os comoverem com o seu próprio despedimento.

Não se pense que é só na América que isso acontece, acontece por todo o mundo, dito civilizado. Chama-se civilização a isto mesmo. Despedir com pose, com bondade.
Acalmar a matilha dos desempregados e, se possível, manter os metediços (imprensa e alguns políticos) arredados do drama.
Estas funções têm que ser bem pagas, só actores as desempenham de forma elegante.
As entidades patronais quando se deslocalizam, anunciam insolvências ou falências, não têm tempo para perder com estes pormenores, leia-se: vidas humanas desfeitas. Estão noutra, noutras actividades bem mais interessantes e importantes, como seja a de lançar indústrias (as mesmas) noutros mundos bem mais carentes e que deles mais necessitam.
E depois... é tão bom chegar a uma terra e o presidente da Câmara, o Ministro da Economia e/ou, o próprio Primeiro Ministro, fazerem uma festa com as televisões presentes, anunciando que a empresa tal e os senhores Sicrano e Beltrano, são os salvadores da região, da pátria, que vão empregar 2OO/3OO ou mesmo 100 trabalhadores indiferenciados e mal remunerados que se assim não fosse teriam de ir pedir ao estado, nas ruas ou praticar o crime.

Como é bom ouvir estes discursos de governantes locais."Coitaditos, ficam tão agradecidos por poderem continuar nas suas funções com scores eleitorais de vencedores e bem vistos pelos seus concidadãos".

Não há tempo a perder, quase não têm férias, por isso preferem pagar, quase sempre principescamente, a "colaboradores/gorilas", por este trabalho. Eles são recrutados porque além de tudo sabem dizer:"porreiro, pá!", embora bem cheirosos podem casualmente deslocar-se até à tasca dos petiscos com o trabalhador dizer-lhe que bom que é quando a empresa revigorar, se tornar mais saudável com a ajuda de todos.

Estes colaboradores são recrutados para que os patrões evitem de pôr "a mão na massa". A sua imagem tem que ser preservada porque têm que continuar a criar emprego, leia-se fazer fortunas, explorando, mas desta vez bem longe dali.

Tudo tem um fim, não é verdade?
Quem ditou o destino?
"Não foram os partidos políticos, ditos de esquerda? Os sindicatos? Os governos que não sabem governar?"
"Claro que foram". Então, há que salvar o que há para salvar e o mais importante de tudo, são eles mesmos, os criadores de emprego, os salvadores das classes trabalhadoras, sem eles não há economias saudáveis, não há vida.
Já contribuíram e deram para este "peditório", para esta terra, para este país, agora vão "ajudar" outros que precisam, leia-se: que ganham uma côdea e não têm sindicatos nem partidos que os defendam. Esses sim, precisam de ser ajudados e eles são uma espécie de cruzados da era moderna.

Quanto aos liquidatários que é disso que se trata, dos economistas ou gestores que convidaram para liquidar a "empresa" de forma doce... esses, se fizerem uma vez bom trabalho (= trabalho limpo, discreto, não ondulante), i.é, que os trabalhadores saiam minimamente satisfeitos com o subsídio de desemprego e convencidos que não podia ter sido doutra maneira, que o Sr. Dr. que veio para conseguir manter a empresa a funcionar fez tudo que estava ao seu alcance, leia-se: não gastou milhares de contos a indemnizar trabalhadores poupando uma quantia invejável à empresa. Esses, dizia eu, se conseguirem tudo isto vão ser chamados tantas vezes quantas as empresas a liquidar e até morrerem terão sempre liquidações para efectuar. Poderão pois, fazer as férias que desejarem, arranjar as mulheres que pretenderem ou mesmo não pretenderem porque o seu estatuto de pessoas com sucesso anda a eles colado. A sua marca é: AQUI VAI UM HOMEM DE SUCESSO.
Aquele que pode comprar certos luxos e que é admirado, não raro, por quem ele despediu. É a vida!
Vida em que a ficção não consegue ultrapassar a realidade.

EM SEGUNDA MÃO




Agora todos se refugiam no nós majestático assim chamado, ou na 3ª pessoa do singular, trata-se de conter, de dizer através de outros, indirectamente. Precisamos dum filtro, de uma mediação.
Somos ladrões de outros. Roubamos o destino dos outros, dos que escreveram livros como Homero ou Kafka ou tantos outros. Nunca descemos aos abismos, ao poço.
Porque necessitamos de escrever, porque nos tornamos seres obscuros?
Parece que a vida se torna fugidia, intermitente, enganadora e com paciência, tenta-se agarrá-la na tentativa que ela se demore.
Na e pela escrita, podemos passar de deuses a demónios, ser heróis ou santos, génios ou apenas personagens de epopeias ou quedas. Sermos um símbolo, uma imagem ou um rito. Construimos e destruímos o mundo.
Quando se escreve também se lê e um leitor é tudo isto porque ao ler os textos destrói o mundo que foi construído e destruído para ele ler.
O leitor é também conjuntamente com o escritor, um construtor e como ele um usurpador.
Ilumina ou obscurece a "realidade" do texto.
A sua percepção do texto lido incide que nem raios de sol numa ou noutra zona, penetrando nela, deixando outras zonas permanecerem na sombra.
Acontece com o texto aquilo que acontece connosco na vida. Uns são o sol e outros são a lua.
Tantos livros, tanto texto escrito, contemplamo-lo nos escaparates da biblioteca ou da feira, como que esculpidos em calcário, mas eis que um é iluminado pelos raios de sol inexistentes enquanto os outros ficam abrigados na sombra. Então vemos a sua irradiação e inclinamo-nos em silêncio para ele procurando decifrar uma história mais lenta que a nossa.
Aí o tempo começa em minutos fora do tempo, vemos o tempo começar.

sexta-feira, 22 de janeiro de 2010

"BLOGANDO" É UMA ATITUDE




Tornamo-nos personagens de nós próprios. Somos personagens com acção, já não somos só pensadas.
Há narcisismo nesta atitude. Entramos no reino da virtualidade "concreta".
Nós próprios somos a ficção. Colocamos a nossa inteligência e argumento ao serviço da visibilidade e não raro, da mediocridade. Tornamo-nos triviais.
Ao fazê-lo não nos desiludimos, somos mais um entre tantos outros e ver as coisas desta maneira, faz com que entremos na ficção. É como nos filmes de François Truffaut, aquele que considerava "que a vida era muito melhor no cinema e, cada um de nós passa a ser um livro", além de que o computador, a internet, o blog são uma espécie de "second life".
Passamos a ser uma espécie de militantes duma Conta-Corrente, lembrando Vergílio Ferreira e o seu diário metafísico.
Colocamo-nos realmente "en attente", como dizem os franceses, neste mundo que não entendemos nem interpretamos, mas que dele somos criaturas. Eis o paradoxo!

E que interessa se somos de 3ª, 5ª ou 1ª categoria? Vivemos no mundo da complacência e por isso somos autocomplacentes (palavra que até não existe, penso).

quarta-feira, 20 de janeiro de 2010

PORQUÊS DA ESCOLHA?




Como se escolhe? Porque se escolhe?
A escolha é uma decisão. A nossa relação com a decisão nem sempre é pacífica. Para alguns até ao acto da decisão é um período de enorme ansiedade porque a escolha trás, em si, o medo do erro.
Decidimos ir dar um passeio em vez de ficar em casa, decidimos um título para uma fotografia ou como se chamar a nossa croniqueta. Quando a lemos de novo, pensamos que lhe poderíamos ter dado outro título. Então porque decidimos aquele naquela altura?
Naquele dia, naquele momento, fizemos aquela escolha, mas noutra ocasião poderíamos fazer outra.
Há uma certa volubilidade nas escolhas mas também existe uma espécie de chamamento para certas decisões.
Algumas delas são feitas por necessidade, outras são irreflectidas e vorazes, outras ainda são levadas pelo influxo dos sentimentos, mas todas trazem a marca das nossa personalidade, não há escolhas puras, anódinas.
Colocamos um nome a uma fotografia por exemplo, esse nome vai reflectir o que nós pensamos até àquele momento, fruto do vivido e experienciado e condicionar, em simultâneo, o que os outros pensam.
Se fizermos a experiência de não atribuir qualquer título, surpreendemo-nos, ficamos perplexos com o que os outros pensam ou viram naquela foto.
É estranho o processo para a escolha dum título, agora levemos este processo até à escolha duma sentença, seja ela política ou judicial ou mesmo clínica. Desde que nos levantamos até que nos deitamos fazemos escolhas. A vida é feita de escolhas, só em bebés não o fazemos, utilizamos apenas reflexos.
A escolha implica cognição, reconhecimento, memória e muitas outras características de que os bebés apenas possuem o potencial.
Quando há muitas direcções a seguir e nos sentimos numa encruzilhada, temos que orientar a nossa escolha, optar por uma e não por outra, é sempre um processo de invenção e de transformação e não raro de algum sofrimento.
No que respeita aos escritos, há-os elásticos, que tanto podem ser uma coisa como outra, por isso colocamos-lhe um título para que obedeçam e sigam um caminho, o caminho do autor, o mesmo acontecendo à fotografia, mas quem lê ou vê, pode pôr-lhe outro, como é óbvio.
Não nos esqueçamos que, às vezes, dar um título é roubar algo do que lá está, é reduzir, é fazer com que o todo quase deixe de existir.

segunda-feira, 18 de janeiro de 2010

A VIDA COMO SOFRIMENTO




A VIDA DOS HAITIANOS NESTE MOMENTO É APENAS FEITA DE JEJUM E SOFRIMENTO.
Já eram pobres, talvez até já soubessem esperar e algumas vezes jejuar.
POVO PACIENTE. Só conhece a impaciência quem não tem hábitos de esperar.
Há pessoas que conhecem o inferno em vida e que há inferno lá isso há.
A brandura destas gentes às vezes pode mais do que a força, como a água é mais forte do que a rocha.
As únicas palavras que agora conhecem são as palavras resistir e sobreviver.
O que pode um psicólogo ocidental dizer a uma pessoa que perdeu tudo, que estará anestesiada de tanto sofrimento?
Convicta estou que os voluntários da palavra amiga que para lá vão, mais que uma palavra amiga, só aprendem, aprendem o que é a vida para além do imaginável.
O que aconteceu agora no Haiti e em 2004 na Ásia com o tsunami é algo que para nós é irreal, não conseguimos concretizar por muitas imagens que vejamos. Nunca iremos apreender a realidade na verdadeira acepção da palavra.

sexta-feira, 15 de janeiro de 2010

EVOCAÇÕES




Nestes dias invernosos, de chuva, vento, frio e nevoeiro resta-nos evocar estes agradáveis locais - as esplanadas.
Agora já temos esplanadas adaptadas aos rigores do Inverno como se via anteriormente por essa Europa fora. Vi a primeira em Braga, mas já me disseram que vão existindo por todo o país.
Nestes dias tão oprimidos em que somos testemunhas dum sofrimento além do imaginável no Haiti que nos reduz a alma e nos dá a dimensão exacta daquilo que somos, é bom lembrar estas delícias de palratório e de observatório que são as esplanadas.
Os economistas ingleses chamaram ao tempo capital, já nos lembrava Camilo Castelo Branco num dos seus livros, e é fazendo jus ao tempo que se investe nas esplanadas a conversar com os amigos que melhor o capitalizamos.
Como sabe bem de quando em vez ouvir uma algazarra difusa.
É preciso rir, só temos tido tristezas. É imperioso encontrarmos rapidamente uma brincadeira na chateza da miséria quotidiana para não mergulharmos no lado do aborrecimento.
É necessário a aventura na alegria.
Proponho que viajemos até outros locais bem mais alegres, deixemos os telejornais com os casos do dia e desinformação constante (há uma correlação directa entre a quantidade de "notícias" que ouvimos e a desinformação),que tenhamos a capacidade de nos rir diariamente um bocado de nós mesmos, que não nos levemos tão a sério e enquanto isso não acontecer, evoquemos o tempo a fluir nas esplanadas da vida.
Centremo-nos noutras melodias.

quinta-feira, 14 de janeiro de 2010

O TRABALHO AO DOMINGO EM PORTUGAL




Os nossos governantes trabalham muito e os dias úteis da semana não lhes chega para as tarefas que têm em agenda. Todos eles ao sábado e domingo, faça sol, chuva ou vento lá vão, em grupo inaugurar creches, ver obras a começar, almoços de partido (porque também faz parte da política) sei lá, tanta coisa...O povo até costuma dizer que vão sempre acompanhados de povo, graças a Deus, que domingo é dia santo e sendo Portugal um país católico devia respeitar este dia e como todos os políticos gostam muito da família, é família para ali, é família para aqui e para acolá e por isso vê-se bem o sacrifício que fazem de cometerem esta heresia, aliás, duas heresias, porque não é só a Igreja a reclamar, a família também. Mas dizia eu, i.é., ouvi dizer que eles se fazem sempre acompanhar duma senhora do povo, muito bondosa que lhes paga tudo, chamada Rosa gaga.
E depois vemos os empregados de super mercado a reivindicar uma tardita de feriado por ano para não trabalhar. Quem se julgam eles? Olha os srs. ministros, até o Sr. Presidente da República, um senhor tão distinto, um senhor que trabalhou, trabalhou, trabalhou e até conseguiu fazer uma marquise na varandinha dele, que ainda levam caro como sabem, até ele, trabalha aos domingos, quanto mais, vejam lá a pouca vergonha. Sim a pouca vergonha, porque o exemplo vem de cima e são para se copiar.
E depois é preciso ver, super mercados há muitos mas governos eleitos não são assim tantos, que diabo! Sabe-se lá o dia de amanhã! Podem não vir a arranjar emprego depois de acabarem o mandato, olha para o que se tem visto, a baterem, de chapéu na mão à porta dos super mercados e centros comerciais para trabalharem porque não conseguem arranjar emprego, ficam a viver tempos infinitos à custa da família até chegar outra vez o partido deles ao poder. Sim, porque a vida não é fácil,para ninguém e eles não ganham o mesmo que o Cristiano Ronaldo, eles são políticos portugueses, por isso são mal remunerados, veja-se, a título de exemplo, o caso do Sr. Dr. Vítor Constâncio, governador do Banco de Portugal, que agora até está prestes a emigrar, a sacrificar-se, para garantir a vida futura dos netos e quiça, dos bisnetos.
A vida custa a todos, andam muitos deles a trabalhar, sem poder, porque o povo mete baixas, eles até ao domingo e feriados trabalham e fazem estes sacrifícios para amealhar uns dinheiritos e pôrem de parte nos "off-shores", porque os malditos dos impostos comem tudo, que o estado não é de confiar, desde pequeninos que ouvem dizer que quem rouba ao estado empresta a Deus e lá nisso eles são muito católicos. Claro que esqueceram que se dizia isso no tempo do fascismo. "Fascismo? Mas isso existiu? Não estivemos sempre em democracia? Não demos muito pela mudança, nós também ainda éramos pequeninos e andávamos distraídos com outras coisas, éramos bons rapazes, não levem a mal". "Sabem, as ajudas de custo é que dá para juntar um bocadito e pôr de parte, porque aos fins-de-semana, ganhamos mais que durante a semana toda, acreditem, e depois como o povo está mais em casa e vê mais televisão, pode verificar com os próprios olhos que estamos a governar, que não brincamos em serviço, que não somos nenhum Odorico, perfeito numa perfeitura brasileira, celebrizado em telenovela, que ía inaugurar o cemitério da terra juntamente com a banda de música e esperava o morto. Nós não esperamos que o "morto" morra, não temos tempo para isso, nós inauguramos mesmo assim, sem morto. AQUI É QUE RESIDE A NOSSA DIFERENÇA! Imagine-se que mesmo assim, o povo às vezes ainda confunde telenovela brasileira connosco, coitados são muito inteligentes quando votam e nós até gostamos muito deles, coitadinhos, mas com o hábito, vêem muitas telenovelas na televisão, mas isso quem tem a culpa são os canais televisivos, que depois até baralham...
"E depois ele não tinha a União Europeia, as reuniões em Bruxelas, a C.E.E., a predidência disto e daquilo, a assinatura dos tratados X e Y, o encontro com o presidente francês, a chanceler alemã, o vizinho espanhol, perde-se muito tempo, parece que não, mas o tempo não estica, daí este sacrifício aos fins-de-semana, feriados e dias santos.
Sim, porque nós trabalhamos, somos como o Manel da telenovela, nós temos um emprego, não andamos para aí nos cafés e confeitarisas ou centros comerciais a passear com o dinheiro do subsídio de desemprego, nós trabalhamos. Está esclarecido?
Também não é preciso terem pena de nós, nós somos assim, porque somos pessoas de bem e estamos a cumprir uma missão, a missão de meter para o bolso e sabem como é, dá muito trabalho, não é fácil, acreditem que também goatávamos de passar o domingo em família, mas governar é duro, por isso deveria ser bem remunerado para não termos que fazer estas horas extras, mas vamos lá, também não é preciso chorar, cá nos vamos arranjando, haja saudinha, não é assim?"

Assinam:

Amigos e vizinhos da Rosa gaga que também já pagam tudo.
(desculpem a pontuação, embora deva estar mais ou menos, alguns e nós fizeram o 12º na Novas Oportunidades e éramos alunos aplicados)

Nota: Agradecemos aos Srs. governantes a entrevista que nos deram que para isso até horas ao sono tiraram, sim porque eles quase mão dormem, coitados! Mas essa parte da entrevista divulgaremos noutra ocasião.

domingo, 10 de janeiro de 2010

LER NA CAMA




Muito difícil mesmo. Agora já nem o consigo fazer, dada a minha coluna cervical ser analfabeta, odiar leituras, mas há uns tempos atrás, tinha de escolher os livros pelo tamanho e pelo peso para esta modalidade de leitura.
Lembro-me do meu pai me lembrar sempre estas duas características quando lhe oferecia um livro, visto também ele ser adepto da modalidade.
Achava graça nessa altura.
Cheguei lá. Cheguei a esta suprema sabedoria - o peso e a letra dum livro são tão importantes quanto o que ele encerra nas suas páginas, caso a modalidade de leitura seja realizada no leito.
Muito antes ainda, fazia grande ginástica para ler duas linhas seguidas e não mudar de linha a meio. Verificava que fechando um olho conseguia fazer a leitura até o final. Depois descobri que afinal era apenas uma questão de mudar de lentes.
Há coisas fáceis que demoram tanto tempo a serem resolvidas!
Às vezes acho que somos uma espécie de recipientes sem tampa e que perdemos conhecimentos anteriormente adquiridos.
Parece coisa pouca esta de não de poder ler na cama, mas não é.
E não o é porque se trata dum luto, duma perda que obriga a que façamos rearranjos, que corrijamos modos.
Dei comigo a procurar lugar para ler, ler na intimidade como eu lia. Não sou daquelas que lê em qualquer lado, tenho de ter o meu canto para estar naquela relação íntima com o livro, o romance e o escritor.
Foi muito difícil aceitar os gritos da cervical, escutar a voz do razoável. Estrear-me nos novos sítios.
Levar o livro para a secretária, ali naquela posição oficial, lá estávamos nós.
Tinha-se perdido cumplicidade e muita intimidade, mas como as leis da "vida" são poderosas e são sempre os mais fortes que atacam, neste caso, a coluna, lá tive eu que mudar de estratégia, e vencer, por ora, o inimigo.
Fui ao meu saber guardado numa caixita, guardado lá muito ao fundo na despensa do meu conhecimento armazenado e lembrei-me que os melhores são aqueles que se retiram temporariamente. Prossigo assim a minha intimidade remodelada com os livros, agora eu sentada numa cadeira e eles, deitados numa secretária, "comme il fault".

sábado, 9 de janeiro de 2010

A REALIDADE OLHA-NOS


Está sempre atrás de nós. Quando nos viramos, vê-mo-la atrás de nós, a observar-nos.
A REALIDADE não tem pensamentos retorcidos, escorrega para o simples, não gosta de dar muitas voltas à cabeça.
Umas vezes anda de carro outras a pé. É discreta e gosta apagar-se de si mesma e dar protagonismo aos outros.
É incansável no andar por aí. É forte, resistente e nunca se cansa.
Prega-nos partidas. Não sei as que costuma pregar aos outros, a não ser aquelas que me contam, mas a mim diverte-se a pregar-mas e faz com que eu pareça a personagem dum livro e que estou a viver dentro das suas páginas. A seguir faz-me recuperar a minha personalidade.
Tem um carácter hermético talvez, gosta de observar.
Uma partida que me costuma fazer é aquela que faz com que quase nunca nos pareçamos connosco mesmos.
Momentos há que se sente perdida porque gosta muito de viajar e quando alguém viaja para paragens que considera luminosas, apanha boleia, para de seguida, colocar à prova a sua elasticidade e obedecer à personagem que segue pala lhe continuar a história.
Tentei, algumas vezes, sem sucesso, observá-la, mas a REALIDADE não aprecia ser sondada, considera que já que toda a gente o faz em vão, melhor fora que desistissem desse nervosismo estéril.
Andarem atrás dela não abona a favor de quem o faz, a não ser que seja um artista retirado ou um amante da falsificação de relatos.
Não sei se sonhei ou se aconteceu realmente, ter estado frente a frente com a REALIDADE e esta me ter dito: "Vive, não te contentes apenas com rascunhos de vida, só os rascunhos podem ser transformados, a vida não. Não te sentes à espera, caminha e não faças batota, não estejas só a olhar para trás".

quarta-feira, 6 de janeiro de 2010

PARECEM PAPAGAIOS





Os comentadores políticos portugueses são uma espécime em franca reprodução (neste particular, mais parecidos com coelhos). Todos falam muito e falam sobre tudo, o que é fantástico! Conseguem ser ainda mais surpreendentes que os canais que os "convidam", sejam eles públicos ou privados.

Imagine-se que a SIC notícias ontem à noite fez um bate-papo (de meia em meia-hora fazem um), em que a apresentadora/entrevistadora sem entrevistar, "entrevistando" colegas de profissão, e alguns até do mesmo canal, como é o caso do Sr. fala de tudo e sabe tudo Ricardo Costa, por acaso e só por acaso, irmão do actual presidente da CM Lisboa e nº 2 do PS António Costa, pegou numa notícia do jornal "O SOL" (jornal altamente credível, ao ponto de inventar notícias) e pediu aos seus "convidados" que comentassem a notícia, aceitando-a como certa "à priori".
E é assim que se faz jornalismo em Portugal! Comentando o comentado.
Não investigam, apenas LÊEM AS NOTÍCIAS DUM JORNAL QUALQUER E REPRODUZEM, FAZENDO UM PROGRAMINHA. Isto é alguma coisa?
É, claro que é. Chama-se mau jornalismo.
Dizem-se canal de referência...
Poupam em jornalistas, em comentadores, todos ou quase, são assalariados da mesma empresa de comunicação.

Estes papagaios sem cor, adoram falar, até se atropelam para vomitar o que eles consideram ser a ANÁLISE, a ÚNICA.
Normalmente são todos do mesmo quadrante político, até porque ganham salário e têm que agradar ao patrão. É assim que se faz opinião no nosso país.
Depois o povo vai votar e acha que sabe porque até é fulano de tal disse e está de acordo consigo(povo).
Esqueceram-se que ouviram a tal opinião, sempre a mesma, proferida por várias pessoas e em variadíssimos locais e que têm interesses a defender, quanto mais não seja o seu emprego e o seu grupo de pertença.

Estes nossos comentadores são uns calhaus sem grandeza. Masturbam-se com palavras.Comem alfarroba soprada pelo Atlântico.
Não lhes conhecemos o nome, não sabemos de onde vêm, a não ser pela legenda de rodapé, mas lá estão eles, todos iguais a fazer jus à sua avença, a repetir o que ouviram dizer.
Mudamos de canal, e lá estão eles os papagaios, os comentadores, só diferindo daqueles na cor, já que não são coloridos, são todos P&B, iguais, sempre iguais.
Parecem treinadores de bancada (esses são aos bandos, aos gritos, sentados em cenários cubistas, ganhando e dando dinheiro a ganhar).
Todos eles são procuradores de interesses indígenas.
Alguns, carecas jovens, envelhecidos precocemente com um à-vontade de cágados, passeiam-se nas diversas televisões, a triturar o real, com "análises" intermináveis, caras dramáticas, dizendo o que este e aquele devia fazer e não fez e o que vai ou não fazer.
São fantásticos! Autênticos sucessores, em linha directa, dos bobos da corte, preenchendo os intervalos com momices, sendo que estes faziam rir.
Não trazem mais valia a ninguém, a não ser a eles próprios.

segunda-feira, 4 de janeiro de 2010

É PERIGOSO!




Hoje a direita, combativa e agressiva, usa métodos da esquerda. Todos os cuidados são poucos.
Não podemos nem devemos, porque concordamos com algumas críticas feitas à governação, estar de acordo com o que a direita diz, esta tem sempre alguma coisa escondida e nunca se engana, mesmo que esteja de acordo com a esquerda nunca lhe faz publicidade.
Agora as associações do patronato uniram-se para melhor combaterem e imporem os seus pontos de vista. As Centrais Sindicais fizeram o mesmo? Claro que não.
Os partidos de esquerda unem-se para melhor defenderem os interesses de quem representam ou dizem que representam?
Raramente, só aquando das eleições presidenciais o fazem. Em contra partida, os partidos da direita unem-se sempre, nem que seja em trabalho de bastidores, como está a acontecer agora entre PS e PSD.
SERÁ A DIREITA MAIS INTELIGENTE QUE A ESQUERDA? Se calhar, só podemos mesmo chegar a essa conclusão.
À direita une-os várias batalhas, tendo à cabeça a luta contra o comunismo e o socialismo que tanto odeiam e medo têm.
Quando a esquerda lutava contra o fascismo estava unida, em democracia tem muito mais dificuldade.
Todos têm pontos de vista diferentes da forma como deve ser exercido o poder e querem fazer prevalecer a sua ideia como única e a melhor para atingir os objectivos, esquecendo a questão central - o povo trabalhador e desfavorecido.
Não nos iludamos! A direita( porque ela existe), nem que goste de afirmar que não há direita nem esquerda, que há ideias boas ou más (outro disfarce), que se auto-intitula de democrata apenas quer defender os interesses do capital e dos capitalistas, da economia liberal e nunca esteve interessada no povo trabalhador, a não ser na forma como ele trabalha, aumentando-lhe o horário de trabalho e diminuindo-lhe à remuneração.
À esquerda deve-se exigir união, novas formas de luta, mas fundamentalmente, União, já que os tempos são outros e a qualidade da democracia diminuiu substancialmente.
Não basta dizer-se que se é de esquerda, é necessário sê-lo!
Há muita gente, demasiada gente a afirmar que é de esquerda e a comportar-se como direita.
NÃO INTERESSA SÓ PARECER, É PRECISO SER.
Uma nova esquerda é necessária, i.é, refundar esta e as suas práticas. Uma esquerda que seja, efectivamente, aquilo que diz ser, que não lute apenas pelo exercício do poder entre si e se desvia cada vez mais dos objectivos fundadores.
NÃO ABRAMOS ESPAÇOS À DIREITA! NÃO NOS PONHAMOS A JEITO. UNAMO-NOS!
A direita só avança quando abrimos brechas nas nossas fileiras.
Sejamos inteligentes e não demos a oportunidade da Srª Nogueira Pinto afirmar que agora não fugia para o Brasil porque os comunistas estão mansos e não fazem mal a ninguém.

sábado, 2 de janeiro de 2010

PARECIA DIA DE ENGANOS




Ao virar de ano e de década fomos surpreendidos com uma bela e importante notícia na comunicação social - alunos do 1º e 2º ciclos, de Espinho, íam aprender filosofia por deliberação de reunião de professores. Havia que preencher 45 horas de tempo lectivo e professores desta cidade optaram por ensinar filosofia.
Ao princípio pensei: Será que é mentira? Mas não era 1 de Abril, mas finais de Dezembro/princípios de Novo Ano.
Os ventos estarão a mudar de direcção?
É uma das pequenas/grandes notícias que a televisão anunciou.
Finalmente alguém com bom senso, pensei.
A filosofia é um alimento essencial à vida. Sem filosofia não se pensa de forma tão livre, tão clara e sem pensar por si, a liberdade individual não existe.
O que interessa aprender novas tecnologias se não se sabe pensar, escrever bem, discutir?

PARAR PARA PENSAR é o tempo melhor gasto possível. Para tudo na vida é preciso pensar. Para ser operário da construção civil, operário agrícola ou patrão.
Se os nossos deputados e políticos soubessem filosofia não cometiam tantos erros, alguns mesmo irreversíveis.
Quem somos? De onde viemos? Para onde vamos?
Para sermos verdadeiramente livres é preciso pensar bem.

Para nós portugueses que gostamos tanto de ser importantes sem pensar, é bom que pensemos para deixarmos de pensar que somos importantes.

Saudo vivamente os professores de Espinho que assim pensam!

sexta-feira, 1 de janeiro de 2010

APETITES



Apetecia-lhe deitar fora os cheiros das recordações. Esses que habitualmente tanto gostava de guardar duma forma quase religiosa.
Queria acabar de crescer. Nada de espaços gordos, apenas espaços vazios, lisos. Toda a vida tinha balançado entre uns e outros.
Não queria oferecer o mais difícil, os fragmentos da sua vida, a memória, tão só entregar em mãos, o que não conhecia dos seus próprios juízos, coisas com importância, afinal!
Queria limpar-se das coisas, ficar rica de outros saberes, fluir, limpar-se de temas e de faladores.
Queria ser um vinho novo que apenas embebeda, sem grandes aromas e corpo, apenas com uma bonita cor.
Queria ver dispensada a voz, emigrar da infância, da juventude, de si, mas sabia que ía ser difícil, porque reconhecia que gostava muito de palavras e conhecia claramente os perigos e as falências do sonho.

Ainda não tinha perdido a curiosidade e esse sentir revelava-se perigoso.
Gostava muito de ser surpreendida e nem tudo o que era novo não lhe interessava.
Depois lembrou-se de varrer. Varrer era uma cruzada para muita gente, levavam nisso a vida inteira, como se o lixo fosse o mal.
Mas conforme se lembrou, logo desistiu da ideia, dessa actividade que lhe provocava dores.
Até agora tinha feito, melhor ou pior, face a todos os rasgões da vida, mas a partir de hoje o que queria mesmo era evitar rasgões, para isso tinha que confiar nos sentidos, pedindo-lhes para que evitassem dar muitos laços.