domingo, 10 de fevereiro de 2013

A MINHA CIDADE

Fui habituada/educada a sentir a minha cidade, a ter a consciência afectiva do espaço entendendo-o como a um ente quase personificado, ou mesmo personificado.
Sentir as ruas como artérias, as casas comerciais, os cafés, os armazéns, como se fossem órgãos, a Ribeira, a Foz, o Rio o coração e a cabeça.
Disseram-me que nasci e vivia numa cidade honrada, de povo trabalhador, explicaram-me a sua história e eu amava ao longo dos anos mais e mais as ruelas, o rio, o mar, as gentes.
Conheci-lhe as histórias, saboreei-lhe os petiscos, fotografei-a desde o rio até ao mar, desde o mar até ao rio, primeiro as fábricas para memória futura, depois os urinóis que eram lindos, as varandas em ferro desenhadas com folhas e flores, as casas senhoriais, os telhados, as clarabóias, os recantos de aldeia na cidade, as tabuletas, tudo o que via eu fotografava com medo que um dia desaparecesse.
O Porto fazia parte da minha energia e era o meu lar.
Nunca pensei emigrar (como agora o faria se fosse nova), não a podia abandonar, era a minha família  a própria cidade.
Até que um dia, cansada de tantas lutas em reuniões com os responsáveis camarários, de tantos prédios a cair, de tantas lojas de chineses a substituir lojas de referência, de tanta fealdade,  abandono a cidade e venho para o campo. Faço o movimento do geofísico, afasto-me para melhor a ver e no meu caso, amar e conservar dentro de mim.
Vim adaptar-me a novas realidades, nem melhores nem piores, mas diferentes em tudo, até mesmo na hipocrisia.
A minha cidade mora no meu coração, a ela pertenço. Apenas a suspendi para melhor resguardar o meu coração.
Não aguento vê-la a morrer aos poucos e a prostituir-se com presidentes de Câmara.
A única forma de lidar com isso foi o silêncio da saída.
Amo-te cidade, como amava e amo o meu pai falecido, o meu avô, a minha avó que me educaram a amá-la.
O meu pai saía comigo e com o meu irmão ao domingo de manhã e mostrava-nos os museus, falava-nos da forma como os homens antigos pintavam em telas com óleos, mostrava-nos as esculturas do Soares dos Reis e outros e eu dizia-lhe encantada, encavalitada nos meus 6/7/8 e mais anos que a escultura era a minha preferida, porque conseguiam fazer sair duma pedra grande o que lá estava dentro sem aleijar ninguém.
O meu pai deliciado com o meu interesse, desdobrava-se em explicações, ele próprio descobria novos ângulos, novos pormenores nas salas que se desdobravam, quentes e acolhedoras.
O meu pai sabia tudo e eu adorava-o e aos passeios de domingo de manhã.
Era assim que as cidades faziam parte da família e eram amadas enquanto tal.
O meu avô mostrava-nos os jardins, os pássaros, as estátuas nos jardins que ele sempre achou demasiado pequenas para aquilo que deveriam ser, na sua  Espanha eram maiores. Com ele descobri o busto de Camões, escondidinho e pequeno, a estátua do Porto no Palácio de Cristal, o cavalo do Vímara Peres na Sé e todos os bustos dos literatos que viviam nos jardins ou Praças, mas também os lagos com peixinhos e os pássaros e íamos até Matosinhos ou mesmo Stº Tirso para ver os periquitos, as rolas, os canários, as galinhas da Índia.
A  minha mãe e avó levavam-me até aos Mercados, em especial do Bolhão e da Ribeira, às lojas de fazendas e de brinquedos, aos armazéns, mostravam-me as Igrejas e as suas obras de arte. A minha mãe levou-me à Igreja de S. Francisco e ao Museu contíguo, a minha avó deu-me a conhecer a do Bonfim, onde fui baptizada, a Capela das Almas onde rezava o Padre Nosso enquanto  minha mãe me mostrava os azulejos e foi assim que me ensinaram a respeitar o património, que me educaram a sensibilidade que me conduziram na vida e que hoje tanta falta faz às crianças. A esta educação antiga devo hoje o meu amor pelo Belo.
Entrar num Museu, ouvir Bach, que nada sei de música, é entrar noutro mundo, no mundo do meus familiares que partiram, é lembrar-me do meu avô que ouvia ópera de pé e com as mãos prontas para orar, é amar ainda mais a minha cidade, mas há os paradoxos da vida... 

2 comentários:

lua vagabunda disse...

que engraçado as reações que me fizeste ter ao ler este teu magnífico texto.
Nunca vi/conheci a minha cidade aquando da infância como tu a percorreste. Muito mais tarde, já adulta e com várias opiniões formadas sobre tudo e nada é que dei comigo a VER mesmo a cidade. As memórias aliam-se a pessoas e a vivências e só assim os locais passam a ter significados.
Sítio belos e coisas lindas há em todo o lado, se as quisermos ver.
Daí jamais ter pena de deixar a tal de pátria, origem ou o q se lhe queira chamar.
Vivi noutras cidades (menos tempo mas até mais intensamente) e todas elas têm memórias minhas, mas sempre ligadas a pessoas.
Acho q só aqui na Holanda me permiti visitar locais, cidades, países sem pessoas a referenciá-los.
A ver as coisas realmente sem referências de nada a não ser a sua beleza natural.

Tenho de (re)pensar melhor isto... mas é mesmo curioso!

lenço de papel; cabide de simplicidades disse...

Cada um tem os seus afectos, eu falei de amor à cidade, não de conhecimento da cidade.Concordo contigo no que se refere a memórias com pessoas, eu estava acompanhada dos meus mais queridos e a cidade era deles também. Obrigada Manela por vires aqui ao meu cantinho.