quarta-feira, 31 de dezembro de 2014

QUANDO SE TEM DOIS AMORES

SOFRE-SE

ÚLTIMO DIA DO ANO

Igual a todos os outros, porque o antigo e o novo não são os anos que os mudam mas o vazio que dentro de nós os afasta.
Acreditar é um acto de coragem dizem, então vamos lá ver em que acredito eu:
. Acredito na morte.
. Acredito que há gente com uma feroz ambição e também há os que possuem uma quase feroz falta de ambição.
. Acredito que todos atravessamos territórios proibidos.
. Acredito que quando esborrachava o nariz contra os vidros era feliz.
. Acredito que as pessoas amargas são há muito sofredoras.
. Acredito que todas as histórias estão mal contadas.
. Acredito que o próximo ano vai ser pior do que passou.
. Acredito em que todo o mal pode piorar.
. Acredito que durei mais um ano ou mal ou bem e que me fui aguentado.
. Acredito que o dia de amanhã vai ser diferente do de hoje porque não há dia nenhum igual mas há muitos que podíamos trocar por outros porque são demasiado parecidos.
. Acredito finalmente que é muito fácil estilhaçar a História.

Rui Mingas "Monagambé"


terça-feira, 30 de dezembro de 2014

Serei difernte? NÃO, NÃO SOU

Que cheia estou da promoção dos livrinhos no facebook.
Que cheia estou do álbum de fotografias do familiário no facebook.
Que cheia estou das frases simpáticas do facebook, do tipo: estás lindíssimo, belíssima e etcs. quando a pessoa é feia como o caraças.
Que cheia estou dos que se pensam originais e mandam patacoadas armados em sei lá o quê.
Mas o problema maior é mesmo que ninguém escapa às hipocrisias várias dessa treta.

Nini Dos Meus 15 anos - Paulo Carvalho (c/ letra)


Maquillaje (tango) Canta: Jorge Vidal


GOMES LEAL

Colhendo todos os ventos da poesia portuguesa na Geração de 70 e, pelas suas deficiências como pelos seus dons e até pela extensão da sua carreira, abrindo passagem para a fase simbolista e pós-simbolista, Gomes Leal é a personalidade adequada para se assinalarem, no remate de uma época, as tendências que já vinham minando e preparando a seguinte.

António Duarte Gomes Leal (n. Lisboa, 1848-06-06 - f. 1921-01-30), filho ilegítimo de um funcionário, viveu quase toda a sua vida da gazetilha e outras formas de trabalho jornalístico, da edição dos livros e sobretudo panfletos, dos rendimentos de que a mãe dispunha por morte do pai, e, finalmente, da caridade alheia, reforçada por uma pensão da República. Chegou a estudar no Curso Superior de Letras, mas a sua cultura literária foi sobretudo feita de outiva, nas redacções e cafés, e em leituras dispersas. A superficialidade fátua das suas elucubrações, a ingenuidade com que sempre misturou, sem fundir numa síntese, a máxima disparidade de influências e frases feitas denunciam-se nas suas constantes ambiguidades concepcionais, na débil construção dos seus pretensos poemas cíclicos, mas não nos devem iludir (como quase sempre tem acontecido) acerca da sua consciência de artista do verso e até de poemetos inteiros. Salvo quando o improviso se lhe impõe, ou quando pretende ter largas vistas sobre os destinos humanos, sobre a ciência, a filosofia ou a política, Gomes Leal é o mais hábil dos nossos poetas do seu tempo: é uma consciência fragmentária, mas lúcida nos seus fragmentos poéticos, se assim nos podemos exprimir. Todas as suas múltiplas virtualidades estão à vista nas Claridades do Sul, publicadas em 1875; mas, desde 1873 até pouco depois do Ultimato, a sua carreira literária liga-se com uma vida pródiga e dispersa de agitação política, em associações, comícios e jornais, onde a cada passo se denuncia a demagogia do seu pessoalismo, a inconsciência da sua vaidade literária. Além da colaboração nos jornais, publica uma série de poemas panfletários ou satíricos que, por entre a retórica dos seus defeitos, assinalam hoje, por vezes com garra emocional e justeza de traço, todo um rol de efemérides: a revolução republicana espanhola e os movimentos operários seus contemporâneos (O Tributo de Sangue e A Canalha, 1873); a celebração republicana de Camões (A Fome de Camões, 1880); a questão de Lourenço Marques, a agitação consequente e a passagem de Rodrigues de Sampaio à reacção (A Traição e O Renegado, 1881); o Ultimato (Troça à Inglaterra, 1890); etc.. A edição do Anticristo, em 1886, pretende culminar essa obra combativa com um poema naturalista que, superando, pretensamente, o Fausto de Goethe, teria digerido toda a ciência e toda a filosofia do tempo.
Mas Gomes Leal, que três anos antes, com a História de Jesus, se revelara saudoso das crenças ingénuas da infância, fere já a nota do seu pessimismo quanto a qualquer possibilidade de progresso humano, dá da evolução histórica uma visão de apocalipse. Em Fim do Mundo (1900) incorpora várias das sátiras anteriores, pretendendo fazer o processo da corrupção da civilização que estaria a findar com o século, visivelmente sugestionado pelo tom acerbo dos Mensonges Conventionnels (1883, trad. franc.) de Max Nordau e pelos filósofos pessimistas então em moda; num posfácio, Autópsia Final, só vê remédio para tantos males na educação do sentimento, "verdadeiro nome de Deus". Este é ainda, fundamentalmente, o ideário do Anticristo refundido em 1907 e acrescentado de Teses Selvagens ("o homem é progressivamente mau"; "a ciência fortifica a maldade humana"; "o homem será sempre o lobo do homem"; etc.). Entretanto, A Mulher de Luto (1902), um poema do Além, revela-o como aderente das ciências ocultas. Com a sua conversão ao catolicismo, em 1910, coincide o lirismo mariânico de A Senhora da Melancolia . Os últimos tempos de Gomes Leal lembram muito os de Verlaine pelo contraponto que neles se verifica entre a sua religiosidade fervorosa de então e uma impressionante degradação moral e física pelo alcoolismo.

Uma considerável parte da obra lírica de Gomes Leal está marcada pela busca de efeitos de surpresa, exotismos ou simples humorismo gazetilheiro na imprensa periódica onde colaborava; é o que acontece com as secções A Carteira de um Fantasista e Misticismo nas Claridades do Sul, e com Mefistófeles em Lisboa (1907). Podem classificar-se nesta categoria muitas das suas composições de colorido satânico ou mefistofélico, em que a lição de Baudelaire ou de Goethe nos surge reduzida a simples contrafacção para assarapantar o leitor. Acrescentemos-lhe ainda numerosos sonetos em que o lirismo se ridiculariza a si próprio numa grosseria, à maneira de João Penha, e obras versejadas que não passam de uma corrida discursiva para chegar até um conceito final estranho, ou que se dá ares de paradoxal ou perverso.
Quanto aos seus panfletos e sátiras, já notámos que as suas limitações são as do muito que contêm de demagogia egotista - o que resulta, afinal, da mesma necessidade, aqui ainda mais evidente, de dar nas vistas, de interessar um público sem grande experiência de ordem estética ou ideológica, vagamente iconoclasta, anti-romântico, antimonárquico, anticlerical, antiplutocrático, mas sem aspirações definidas a um teor de vida ou a uma ordem social diferente. Os poemas cíclicos de Gomes Leal falham inteiramente como tais, quer se trate das duas versões quase opostas do Anticristo (naturalista a de 1886, místico-sentimental a de 1907), quer do niilista Fim de um Mundo, ou da ocultista Mulher de Luto (1902).
No entanto, a obra de Gomes Leal obedece, no conjunto, a impulsos mais autênticos, que lhe dão uma fundamental unidade orgânica e se denunciam constantemente na sua estilística. Vários desses impulsos já se haviam verificado em poetas como Gérard de Nerval e Baudelaire, que chegaram até Gomes Leal, através, sobretudo, das Prosas Bárbaras de Eça, de que o nosso poeta é o legítimo herdeiro (ou co-herdeiro).

Como os outros contemporâneos, ele sofreu do profundo abalo das crenças da infância, em sintonia com a crítica bíblica e o darwinismo; e o fundo psicológico da sua obra acusa nitidamente o conflito que se trava entre o apelo afectivo da concepção transcendentalista cristã, constantemente sustentado pela influência da mãe e por um conjunto de rotinas quotidianas - e, por outro lado, uma aspiração indefinida de progresso histórico e de sobrevivência pessoal, que é, ao tempo, contraditada por sentimentos opostos de decadência histórica, de fim do mundo, e por uma obsessão materialista mecanicista da realidade. A natureza aparece-lhe como uma vasta necrópole de vidas findas, de pessoas, e até de deuses desacreditados: "a morte sai da vida - a vida, que é um sonho!". Mas da constante conversão recíproca entre a morte e a vida, o que mais impressiona a poesia de Gomes Leal é a morte, a dissolução de vidas, pessoas, religiões. No fundo, interessa-o, especulativa e afectivamente, não o que será, mas o que foi : de que modo poderá subsistir o que morreu (como subsistirá o próprio corpo, o da mulher amada, o das flores, etc.?). Uma vez que os deuses têm todos morrido, Gomes Leal pergunta: "Qual será o deus novo de amanhã?". A Natureza, aliás divinizada em Pan, ou identificada com Satã, ora lhe parece condenada à destruição, visível na Lua Morta, ora secretamente animada, cheia de estranhas correspondências que só ele, poeta, pressente, no seu sentido de fraternidade universal que, franciscanamente, se estende à podridão, às coisas grotescas e miseráveis. A riqueza metafórica de Gomes Leal, certa exploração certeira de sinestesias da alucinação nevrótica são o selo autenticador destes sentimentos. O seu erotismo transfunde-se das mulheres para as coisas. Sob a luz do sol meridional, ele julga perceber, agudamente, como as mais diversas sensações ecoam umas às outras: "Nas lânguidas noutes estreladas/como espectros de espinhos e rosas,/erguem-se em nós as cousas apagadas"; há noites em "que a tristeza tem formas monstruosas/como, num sonho, os pórticos claustrais". E frui "as gostosas torturas do mistério". Em numerosos passos, a sua poesia documenta uma agudeza sensorial que exige o ineditismo da imagem e da comparação, como pode sobretudo exemplificar-se com a conhecida Nevrose Nocturna das Claridades ("fria como o luar/sobre o dorso luzente e excepcional de um peixe", por exemplo). É claro que este ineditismo deriva também, nalguns passos frustes, do mero rebusque de excentricidade, de imitações baudelairianas e outras, e de ingredientes fixos, como, por exemplo, o do exotismo dos nomes bíblicos. Mas algumas das suas inesperadas combinações não deixam de fazer pensar em tendências muito posteriores de poesia experimental .
Gomes Leal apresenta-nos, assim, a mais requintada estética do verso seu contemporâneo em português. Há nele, aliás, amostras de tudo quanto os outros poetas portugueses do seu tempo variadamente tentaram; há ritmos fraseológicos já batidos, e há-os surpreendentes: narrações, descrições, enumerações, desdobramentos analógicos banais, mas também a expressão inexcedivelmente exacta dos mais variados tons de sensibilidade, que exige fartos elementos de uma escrita poética completamente nova no idioma. A contradição mais importante da sua poesia consiste em que nos sugere, sim, uma desconhecida animação do mundo objectivo e subjectivo, a riqueza de correspondências materiais e psíquicas, mas através de uma estilística e, em parte, através de uma linha de evolução ideológica que estão carregadas de sugestões, precisamente opostas, de catástrofe universal apocalíptica, de degenerescência civilizacional, de submissão pessoal a forças ou ditames ocultos que, pretensamente, acabariam por dominar os homens. O mundo, tal como Gomes Leal o sente, parece radicalmente inumano por duas razões opostas mas concorrentes nisso: o seu alheamento fatal a qualquer animação, incluindo a animação do espírito humano (materialismo mecanicista, inspirado por certa divulgação da ciência, por certo darwinismo, pela crítica bíblica de Renan, etc.); e a sua animação devida a uma vontade transcendente, a que só cumpre resignarmo-nos (concepção teológica ou ocultista). Quer dizer que o drama íntimo de Gomes Leal é, no fundo, o de Antero e o da ideologia dominante do tempo, mas expresso por uma forma menos conceptual, e mais poética; é o drama do empate entre o mecanicismo e o transcendentalismo.


In História da Literatura Portuguesa (DVD),
2002 Porto Editora

CARVALHO

VISTO DAMINHA JANELA

segunda-feira, 29 de dezembro de 2014

MICHEL PETRUCCIANI - Juste un Moment


FALEMOS DE AVIÕES

O capital e quem o defende enterra-nos as unhas no cachaço, subjuga-nos e ri-se com escárnio e a maioria de nós tem medo, muito medo, desconhecendo a força que tem a união.
A luta passou o manter-se à tona no dia-a-dia.
A coragem baixou os braços e atira-se em retóricas para os que nada têm triturando os que recebem subsídios como se fossem esses os responsáveis. Admiram os ladrões e os assassinos batendo-lhes palmas.
Os valores e os princípios fazem o pino. O branco passou a preto e vice-versa.
Não há homens e mulheres a arrancarem. Não há homens e mulheres base, ficamos todos pelo caminho.
A esquerda aburguesou-se e, não raras vezes, confunde-se com a direita.
Lembram-se dum cavalheiro escritor que gastou muitas páginas e  tinta a descrever as voltas e reviravoltas que dava na cama antes de começar a dormir?
Pois então, os nossos políticos e comentadores do sistema fazem o mesmo com as palavras e eu vou-me encolhendo com tanta verborreia.
Desembrulho-me com a natureza, a música e o amor e entendo cada vez mais aqueles que dizem que as palavras não têm valor nenhum. Neste sentido, não têm mesmo.
A vida é breve, precisamos neste átrio da vida de beijos, muitos e, íntimos amigos.
Eu sei e muitos de nós sabemos que a razão nos aprisiona.
Galileu viveu aprisionado nove anos numa casa perto de Florença (1633-1642), aprisionado da razão, contou-me o Bertold Brecht.

Ando cá desconfiada de que quando falamos de aviões ou aparentados é que mais nos civilizamos.

FAIA

CASA DAS ARTES
 

domingo, 28 de dezembro de 2014

sexta-feira, 26 de dezembro de 2014

VERGONHA EU TENHO

Sinto-me envergonhada de passar por estes governos.
Sinto-me envergonhada da administração da Europa.
Sinto-me envergonhada com esta 'democracia'.
Sinto-me envergonhada de tanta iliteracia.
Sinto-me envergonhada de tanto medo nesta sociedade. Os trabalhadores têm muito medo de ser despedidos e fazem tudo o que os patrões querem.
Sinto-me envergonhada dos políticos que temos.
Sinto-me envergonhada da Justiça que se politizou.
SINTO-ME DEMASIADO ENVERGONHADA.
DESTRUIRAM-NOS.
A ÚNICA SAÍDA É LUTAR PARA SAIR DESTE IMENSO ATOLEIRO EM QUE NOS METERAM.
GENTE SEM ESCRÚPULOS, SEM PRINCÍPIOS, SEM VALORES.
VERMES OU PIOR DO QUE ISSO ELES SÃO.

de RICARDO REIS ( HETERÓNIMO DE FERNADO PESSOA)

V Há metafísica bastante em não pensar em nada.
O que penso eu do mundo?
Sei lá o que penso do mundo!
Se eu adoecesse pensaria nisso.
Que ideia tenho eu das cousas?
Que opinião tenho sobre as causas e os efeitos?
Que tenho eu meditado sobre Deus e a alma
E sobre a criação do Mundo?
Não sei. Para mim pensar nisso é fechar os olhos
E não pensar. É correr as cortinas
Da minha janela (mas ela não tem cortinas).
O mistério das cousas? Sei lá o que é mistério!
O único mistério é haver quem pense no mistério.
Quem está ao sol e fecha os olhos,
Começa a não saber o que é o sol
E a pensar muitas cousas cheias de calor.
Mas abre os olhos e vê o sol,
E já não pode pensar em nada,
Porque a luz do sol vale mais que os pensamentos
De todos os filósofos e de todos os poetas.
A luz do sol não sabe o que faz
E por isso não erra e é comum e boa.
Metafísica? Que metafísica têm aquelas árvores?
A de serem verdes e copadas e de terem ramos
E a de dar fruto na sua hora, o que não nos faz pensar,
A nós, que não sabemos dar por elas.
Mas que melhor metafísica que a delas,
Que é a de não saber para que vivem
Nem saber que o não sabem?
«Constituição íntima das cousas»…
«Sentido íntimo do Universo»…
Tudo isto é falso, tudo isto não quer dizer nada.
É incrível que se possa pensar em cousas dessas.
É como pensar em razões e fins
Quando o começo da manhã está raiando, e pelos lados das árvores
Um vago ouro lustroso vai perdendo a escuridão.
Pensar no sentido íntimo das cousas
É acrescentado, como pensar na saúde
Ou levar um copo à água das fontes.
O único sentido íntimo das cousas
É elas não terem sentido íntimo nenhum.
Não acredito em Deus porque nunca o vi.
Se ele quisesse que eu acreditasse nele,
Sem dúvida que viria falar comigo
E entraria pela minha porta dentro
Dizendo-me, Aqui estou!
(Isto é talvez ridículo aos ouvidos
De quem, por não saber o que é olhar para as cousas,
Não compreende quem fala delas
Com o modo de falar que reparar para elas ensina.)
Mas se Deus é as flores e as árvores
E os montes e sol e o luar,
Então acredito nele,
Então acredito nele a toda a hora,
E a minha vida é toda uma oração e uma missa,
E uma comunhão com os olhos e pelos ouvidos.
Mas se Deus é as árvores e as flores
E os montes e o luar e o sol,
Para que lhe chamo eu Deus?
Chamo-lhe flores e árvores e montes e sol e luar;
Porque, se ele se fez, para eu o ver,
Sol e luar e flores e árvores e montes,
Se ele me aparece como sendo árvores e montes
E luar e sol e flores,
É que ele quer que eu o conheça
Como árvores e montes e flores e luar e sol.
E por isso eu obedeço-lhe,
(Que mais sei eu de Deus que Deus de si próprio?),
Obedeço-lhe a viver, espontaneamente,
Como quem abre os olhos e vê,
E chamo-lhe luar e sol e flores e árvores e montes,
E amo-o sem pensar nele,
E penso-o vendo e ouvindo,
E ando com ele a toda a hora.

( extraído de"O GUARDADOR DE REBANHOS", escrito em 1911- 1912)

ISTO NÃO PODE CONTINUAR

Factura sobe de ano para ano. Se em 2012 foram 1080 milhões, este ano, e até Novembro, juros cobrados atingem 1933 milhões. Nenhum destes euros baixou a dívida
O custo dos juros cobrados pela troika pelos 78 mil milhões de euros de empréstimo a Portugal já ultrapassaram o peso de 1% do PIB nas contas públicas, tendo quase duplicado de 2012 até Novembro deste ano, de 1080 milhões para 1994 milhões de euros - justificado pela entrada em pagamento das diferentes tranches que foram sendo libertadas pelos credores internacionais com as avaliações feitas ao ajustamento português. Os valores são das sínteses da execução orçamental preparadas pela Direcção-Geral do Orçamento (DGO), incluindo a que foi ontem divulgada sobre Novembro de 2014.
Desde que Portugal começou a saldar os juros cobrados pela troika, os contribuintes já foram chamados a pagar um total de 4,77 mil milhões de euros neste tipo de encargo, isto sem ainda terem começado a pagar esta dívida propriamente dita. A este valor juntam-se mais 165,6 milhões de euros cobrados pela troika a título de comissões. Tudo somado, a factura já atinge os 4,94 mil milhões de euros desde 2012 e até Novembro último, cerca de 2,8% do PIB anual do país.
No mesmo período agora considerado, a dívida directa do Estado não parou de subir: se em Janeiro de 2012 o Estado acumulava uma dívida de 180 mil milhões de euros, em Novembro deste ano este valor já estava na casa dos 210 mil milhões de euros - mais 29,8 mil milhões de euros. Este crescimento surgiu apesar das metas prometidas pelo programa de austeridade imposto ao país: que garantia para este ano um desemprego de 11%, uma dívida pública de 107% e um défice de 2,5%.
Além da subida dos juros cobrados pela troika, também a constante subida da dívida portuguesa trouxe aumentos dos juros pagos aos restantes credores do país. Entre Janeiro e Dezembro deste ano, os contribuintes portugueses vão pagar 8,4 mil milhões de euros em juros e outros encargos, contra os 7,95 mil milhões de euros de 2013 - em 2010, foram 5,2 mil milhões de euros.
O valor dos juros pagos pelos contribuintes portugueses, até ao momento, à troika - Fundo Monetário Internacional, Comissão Europeia e Banco Central Europeu - é, no entanto, apenas uma pequena gota da factura total que o empréstimo da troika vai custar ao país: além dos 78 mil milhões de euros efectivamente emprestados, Portugal deverá ter de arcar com um total de 34,4 mil milhões de euros - quase 30% do PIB - em juros ao longo do empréstimo. Caso juntemos as duas parcelas - empréstimo e custo do mesmo -, os pagamentos totais exigidos pela solidariedade financeira de europeus e norte-americanos salta até aos 112,4 mil milhões de euros: cerca de 66% do PIB anual do país.
Considerando o estado da execução orçamental ontem oficializado pela DGO [ao lado], o saldo da economia portuguesa seria positivo caso não tivesse de arcar com a factura dos juros da dívida de 210 mil milhões de euros acumulada e nunca resolvida pelos distintos governos. Os juros travam assim, cada vez mais, o relançamento económico do país.

jornal I

OS FREIXOS DO RIO LIMA


"AH RIBEIRA DO LYMA CELEBRADA..."


Peregrino-Écloga XV (Diogo Bernardes, ca1530-1596)

«(...) Limiano:
Está hum bosque ali verde, e sombrio,
Que sombra nos dará, assento o prado,
Fermosa vista o monte, o valle, o rio,
O rio que verás tam sossegado,
Que te parecerá que se arrepende,
De levar agua doce ao mar salgado.
Nem cabra, nem ovelha ali offende,
Erva, folha, nem flor, do ferro duro,
A planta, pelo ar livre, se estende,
N'uma secreta lapa, cristal puro,
Veras estar caindo em gotas fria,
Por antre hum musgo antigo ved' escuro.
Ali só me recolho os mais dos dias,
Por nao tratar com gente endurecida,
Que mais brandura sinto em penedias.

HOJE ENCONTREI ESTA


SYLVIA BEIRUTE

CONOSCENZA



{o teu reconhecimento é a tua dependência},
não o deixes passar da fase da costura.
surge. insurge. inespera.
adquire expressões através do
eco difuso dos vegetais, coloca-te
nas ranhuras da madeira.
há uma vida imprópria algures.
pode não ser como aquela que espera
na plumagem de uma memória
por antecipação, mas protege o silêncio
e não deixa coagular o sangue.
{o teu reconhecimento é a tua dependência},
e quanto mais o memorizares
mais afastado estarás
dos lados obtusos de quem te deseja habitar
e da semântica temporal
das pessoas que te pedirão um
poema bonito,
e nada pior do que escrever
um poema bonito.



Sylvia Beirute

in Uma Prática para Desconserto

BERTOLD BRECHT

Aula de Amor
Mas, menina, vai com calma
Mais sedução nesse grasne:
Carnalmente eu amo a alma
E com alma eu amo a carne.

Faminto, me queria eu cheio
Não morra o cio com pudor
Amo virtude com traseiro
E no traseiro virtude pôr.

Muita menina sentiu perigo
Desde que o deus no cisne entrou
Foi com gosto ela ao castigo:
O canto do cisne ele não perdoou.
Bertold Brecht

MANUEL DE BARROS

A maior riqueza
do homem
é sua incompletude.


Nesse ponto
sou abastado.

Palavras que me aceitam
como sou
— eu não aceito.

Não aguento ser apenas
um sujeito que abre
portas, que puxa
válvulas, que olha o
relógio, que compra pão
às 6 da tarde, que vai
lá fora, que aponta lápis,
que vê a uva etc. etc.

Perdoai. Mas eu
preciso ser Outros.

Eu penso
renovar o homem
usando borboletas.

RETRATO DO ARTISTA QUANDO COISA  Manoel de Barros
 
 

SOBREIRO


quinta-feira, 25 de dezembro de 2014

DIA DE NATAL

Tudo dorme cá em casa. Lotação esgotada.
Um belo dia desejo a todos.
Está frio mas
vai estar luminoso

segunda-feira, 22 de dezembro de 2014

de GUERRA JUNQUEIRO

PARASITAS


No meio duma feira, uns poucos de palhaços
Andavam a mostrar, em cima dum jumento
Um aborto infeliz, sem mãos, sem pés, sem braços,
Aborto que lhes dava um grande rendimento.
Os magros histriões, hipócritas, devassos,
Exploravam assim a flor do sentimento,
E o monstro arregalava os grandes olhos baços,
Uns olhos sem calor e sem entendimento.
E toda a gente deu esmola aos tais ciganos:
Deram esmola até mendigos quase nus.
E eu, ao ver este quadro, apóstolos romanos,
Eu lembrei-me de vós, funâmbulos da Cruz,
Que andais pelo universo há mil e tantos anos,
Exibindo, explorando o corpo de Jesus.

Lhasa - La Ilorona - TV5 Acoustic - 02.04.2004


RETRATO



DO MEU ESTADO DE ESPÍRITO

Lhasa de Sela - What Kind Of Heart


INJUSTIÇA

PORQUE É QUE O SÓCRATES CONTINUA PRESO SE OS BANQUEIROS, O PORTAS, O BARROSO E TODOS OS OUTROS NÃO ESTÃO?
BRINCAMOS ÀS JUSTIÇAS.
SEMPRE DETESTEI O SÓCRATES ENQUANTO POLÍTICO, PORTANTO ESTOU À VONTADE PARA REVELAR ESTE SENTIMENTO DE INCÓMODO.
A DIREITA VENCE SEMPRE E O SÓCRATES PÔS-SE SEMPRE A JEITO. NÃO SENDO DE DIREITA TAMBÉM NÃO É DE ESQUERDA.
SE DEVE ESTAR PRESO? SE CALHAR DEVE, MAS OS OUTROS TAMBÉM.
JUSTIÇA À PORTUGUESA ESTA.
NÃO SE ESQUEÇAM, POLÍTICOS E MAGISTRADOS, QUE TAMBÉM HÁ A JUSTIÇA DE FAFE E QUE ATÉ FICOU IMORTALIZADA.

Les Saisons Jean Ferrat


ANTÓNIO MANUEL COUTO VIANA

SAUDADES DO QUE NÃO FUI

Para Manuel de Freitas

Saudades da boémia que não sei:
O excesso de bebida. O charro.
(Eu sempre fui respeitador da lei,
Mas de barro.)

Saudades do balcão com a amizade
E o copo de cerveja.
(À noite, despe-se a cidade:
Único corpo nu que me deseja.)

Saudades do carinho
No ombro, na coxa, no cabelo.
(A mão da morte entorna o vinho
À sede de bebê-lo.)

Saudades desse alguém
Que não sei onde mora.
(E não sei de onde vem
Quando demora.)

Saudades do amor
Que nunca foi o meu.
(E de que sou acusador
E réu.)

Saudades a exigir ao velho
A vertigem da fuga.
(Mas não se pode destruir, no espelho,
A ruga.)

Restos de Quase Nada e Outras Poesias, Averno, Lisboa, 2006.

ROBINIA PSEUDOACÁCIA

Robinia pseudoacacia frente à Casa de Camilo, São Miguel de Seide
Jorge, o "filho louco" de Camilo Castelo Branco, plantou em 1871, tinha então 8 anos, uma árvore junto à escadaria de pedra no terreiro da casa de S. Miguel de Seide. A esta árvore se refere Camilo várias vezes, como em Durante a febre:

Quando a Acácia do Jorge ainda outra vez inflore,
Chamai-me, que eu de Abril nas auras voltarei
.

A árvore não é uma acácia, mas uma robínia. Um deslize em taxionomia que não ofusca o apego de Camilo ao convívio com a natureza, alimentado pelas léguas palmilhadas desde a infância em pedregosas ladeiras de serra. Camilo chegou a ser um peregrino convicto de arvoredos, córregos e morros de terra agreste, aldeias, costumes e lendas populares, que depois transfigurou em palco de prosa admirável.

Estas árvores são minhas amigas há vinte e sete anos. (...) Seria engodo ao riso andar-me eu aqui abraçando árvores, se alguém me visse. Que o não saibam os tolos, nem os felizes. (...) Quando eu lá ia [às matas do Bom Jesus do Monte], voltava sempre melhor. Nunca me aconteceu outro tanto ao dobrar a última página de livro de moral.

SÓ ESTERCO

Começo por um registo de interesses: Álvaro Sobrinho é um dos accionistas da Newshold, empresa proprietária do jornal i e do semanário "Sol" - publicação onde trabalhei seis anos, três dos quais sob gestão da Newshold.
Álvaro Sobrinho foi chamado na quinta-feira à Assembleia da República para explicar na comissão parlamentar de inquérito do caso BES a sua gestão do Banco Espírito Santo de Angola (BESA) e a relação deste banco de direito angolano com o seu principal accionista (o BES).
As relações entre o BES e Angola foram muito importantes nos últimos anos antes do desastre para a gestão de Ricardo Salgado conseguir manter resultados positivos no banco em Lisboa. Angola foi uma fonte de liquidez cada vez mais importante para o BES e a sua participação nos lucros finais do banco português cresceu exponencialmente com a crise nos mercados europeus em 2008/2009. A dependência do BES face ao BESA foi assim crescente.
Por isso mesmo, a audição de Álvaro Sobrinho era importante para perceber alguns pontos do desastre que se abateu sobre o Grupo Espírito Santo (GES). Saliente-se desde já que esses pontos não são a principal causa da falência do GES. A origem central do problema do GES está na gestão das administrações lideradas por Ricardo Salgado no BES e nas diversas empresas do GES e na ocultação do passivo das holdings familiares. Se o único ou o mais grave problema do universo GES se chamasse BESA, nunca teria existido a hecatombe que se verificou no grupo da família Espírito Santo.
Apesar de prejudicada pelo sigilo bancário angolano que o banqueiro está obrigado a seguir (como Ricardo Salgado e outros depoentes seguiram), Álvaro Sobrinho confirmou que nada era feito sem o conhecimento dos representantes do BES e que Ricardo Salgado e Ricardo Abecassis, chairman do BESA, sabiam de tudo o que era essencial e ajudou a desmitificar alguns aspectos deste caso.
Desde logo, a questão da linha de crédito de cerca de 3,3 mil milhões aberta no BES para, supostamente, financiar o BESA. Ricardo Salgado já tinha afirmado que a mesma visava apoiar as empresas exportadoras portuguesas que operavam no mercado angolano.

domingo, 21 de dezembro de 2014

PASSEIO DE DOMINGO



NATAIS

Não sinto paz no coração.
Sinto indignação e revolta por toda esta situação que por muito que expliquem é inexplicável.
Sinto muita tristeza e muita mágoa.
SINTO QUE SÓ O SILÊNCIO FALA.

365 DIAS DE BICHOS

 ''O BICHO''
                                                                                       (Manuel Bandeira)
                                       Vi ontem um bicho
                                       Na imundície do pátio,
                                       Catando comida entre os detritos.
                                       Quando achava alguma coisa,
                                       Não examinava nem cheirava:
                                       Engolia com voracidade
                                       O bicho não era um cão.
                                       Não era um gato.
                                       Não era um rato.
                                       O bicho ,meu Deus,era um homem.
                             

NATAIS

LADAINHA DOS PÓSTUMOS NATAIS
Há de vir um Natal e será o primeiro
em que se veja à mesa o meu lugar vazio
Há de vir um Natal e será o primeiro
em que hão de me lembrar de modo menos nítido
Há de vir um Natal e será o primeiro
em que só uma voz me evoque a sós consigo
Há de vir um Natal e será o primeiro
em que não viva já ninguém meu conhecido
Há de vir um Natal e será o primeiro
em que nem vivo esteja um verso deste livro
Há de vir um Natal e será o primeiro
em que terei de novo o Nada a sós comigo
Há de vir um Natal e será o primeiro
em que nem o Natal terá qualquer sentido
Há de vir um Natal e será o primeiro
em que o Nada retome a cor do Infinito
David Mourão-Ferreira

Himno al Amor - Édith Piaf- A ÚNICA COISA QUE VALE A PENA


sábado, 20 de dezembro de 2014

POIS É...

"Como é sabido, o PCTP/MRPP nunca morreu de simpatias por José Sócrates e pelo seu governo, um dos piores que o país teve. Mas não é isso que agora está em causa, quando a Polícia Judiciária, pela mão de famigerados justiceiros como Rosário Teixeira, com a cobertura de agentes do Ministério Público e de juízes como Carlos Alexandre, depois de ter abortado prematuramente a Operação Labirinto no caso dos vistos gold, permitindo que Miguel Macedo e outros altos quadros do Estado, do governo e do PSD pudessem escapar à prisão; depois de deixar à solta Ricardo Salgado, chefe do maior gang de gatunos e financiador das campanhas eleitorais de Cavaco e do PSD, e de não tocar em Paulo Portas e Durão Barroso, a mesma PJ e ministério público decidem precisamente prender uma importante figura do Partido Socialista, com quem os actuais dirigentes do PS mais se identificam politicamente."

António Garcia Pereira, facebook

"happy Cows" Kuhrettung Rhein Berg english subtitles / vacas liberadas


HÁ DEMASIADA GENTE A ACREDITAR NO PAI NATAL


MORUS NIGRA


PORTUGAL 2014

"Se forem almoçar ao Sheraton pagam 6% de IVA, se forem a um restaurante familiar pagam 23%; a mercearia paga mais IRC do que o Pingo Doce que tem a sua tributação fiscal na Holanda; uma casa de um trabalhador normal paga IMI, se for um fundo imobiliário de 100 casas fechadas estão isentos" - Paulo Teixeira de Morais

HOJE


sexta-feira, 19 de dezembro de 2014

Coro Santo Amaro de Oeiras - A Todos Um Bom Natal


PLÁTANOS

St George's Gardens - LondresA meio caminho entre Russell Square e King's Cross encontra-se, escondido entre prédios, um cemitério morto que é uma apoteose de vida. Cemitério morto porque desde há mais de século e meio ninguém lá é enterrado; e vivo por causa das árvores e de toda a fauna de insectos, pássaros e esquilos que lhe está associada. Não ultrapassa um hectare de área, mas é bem mais valioso do que aqueles jardins e parques, mesmo que amplos, onde as árvores nunca são autorizadas a crescer.

Conta a placa no local que o cemitério, um dos primeiros na Grã-Bretanha a não ficarem anexos a uma igreja, foi aberto em 1713 num terreno descampado. Em 1855, quando o cemitério teve de encerrar por sobrelotação, a cidade tinha crescido desmesuradamente a toda à volta. Rebaptizado como St George's Gardens, reabriu em 1885 como jardim público ao gosto vitoriano, mantendo-se os já então seculares plátanos a pontuar os meandros dos caminhos.

De formato rectangular truncado, alongando-se por 200 m no sentido este-oeste, com um acesso no extremo oeste e mais dois no extremo oposto, o jardim, além de nos induzir ao descanso com os bancos bem servidos de sombra, funciona como atalho aprazível, surpreendente ao primeiro encontro, para quem se desloque a pé.
 E o meu plátano

CORRUPÇÃO E DESIGUALDADES

Crise económica, crise social. Um Orçamento de Estado para 2015 que insiste na austeridade e no empobrecimento, uma dívida astronómica e impagável em democracia, desigualdades gritantes e crescentes, um desenvolvimento adiado, a multiplicação de casos de corrupção. Só quem não compreende o quanto as sociedades são ecossistemas se espantará com a coincidência, e interligação, de todas as vertentes do colapso que estamos a viver.
O ano de 2014 vai terminar marcado por múltiplos casos do foro judicial, que farão transitar para os anos seguintes complexos processos de investigação, julgamentos e sentenças que envolvem figuras e instituições ligadas ao poder económico, financeiro e político. Os chamados «caso GES/BES», «caso dos vistos Gold» ou «caso José Sócrates», juntando-se a outros que se sucederam num passado recente, envolvem, entre outras, suspeitas ou acusações de práticas criminosas, de gestão danosa, de fraude fiscal, de branqueamento de capitais e de corrupção.
Seja qual for o desfecho dos processos, apurem eles matéria susceptível de condenações ou ilibações, anunciam-se procedimentos complexos, mais morosos do que seria desejável e com imbricamentos que tenderão a extravasar o campo estritamente judicial, como é o caso do campo mediático. Com a ajuda deste, e com alguns órgãos de comunicação social useiros e vezeiros na substituição da investigação jornalística por fugas ao segredo de justiça, assim degradando o jornalismo e corroendo a justiça, instalou-se um clima de «directos» que nada acrescentam senão ansiedade e comoção, e que disfarçam mal a (contudo compreensível) ausência de informação.
Juntemos à pressão do imediatismo ansiogénico as fortes emoções antagónicas suscitadas quer pelo combate político quer pela competição nos negócios, tudo isto numa situação de quatro anos de profunda crise económica e social e de percepção pública do quanto ela deve à corrupção e ao poder dos grupos económicos na acção política, e será fácil compreender como depressa se cavaram trincheiras onde se acantonaram posições fechadas, e como tantas opiniões e convicções se transmutaram em certezas inamovíveis, por vezes com laivos justicialistas.
A questão que agora se coloca, mesmo tendo em mente que, em rigor, a política e a justiça têm áreas de absoluta separação mas também áreas de cruzamento (a qualidade do funcionamento da justiça depende muito das políticas adoptadas para a justiça), é a de pensar qual a melhor forma de contribuirmos, como cidadãos, para que se obtenha a melhor justiça. O primeiro princípio de que não se pode abdicar, porque ele existe para defender todos, sem exclusão, é sem dúvida o da presunção de inocência. Em seguida, quer estejamos animados por expectativas mais optimistas ou menos optimistas quanto à qualidade actual da justiça em Portugal, temos de a deixar actuar, sem deixar de prestar atenção ao que ela nos mostrar que terá de ser melhorado (o excesso de prisão preventiva parece evidente). Tal como temos de deixar o bom jornalismo ir fazendo o seu trabalho e contribuir para a nossa informação, afastando-nos do que só produz ruído e lixo (e deve ser sancionado).
Isto implica trocar as trincheiras do justicialismo e das adesões (ou repulsas) emocionais pela trincheira da justiça. Implica fazer a escolha de suspender o juízo – esse conceito grego de epoché de que falava Descartes –, não como uma desistência de compreender ou até de ajuizar, mas como uma consciência de que essas mesmas acções remetem para a acção (exigem-na) de outros actores e para metodologias e apuramentos de que não somos, neste momento, conhecedores. A escolha da suspensão do juízo em relação a casos e figuras concretas permite também abrir o espaço de que tanto precisamos para passar do centramento nas práticas e comportamentos individuais, que são do foro judicial, para uma reflexão cidadã sobre as estruturas e arranjos institucionais a que as escolhas políticas nos têm conduzido.
Na trincheira da justiça, os combates exigem um sistema judicial que a garanta para todos, mas exigem também justiça social e económica. Não pressupõem um combate entre o Bem e o Mal, com os respectivos heróis e vilões, antes convidam a reflectir sobre as escolhas que fazemos e que são mais capazes de criar uma configuração institucional da sociedade (justiça, saúde, educação, segurança social, transportes, etc.) geradora de mais democracia, mais igualdade, mais justiça social. Sabemos, em particular desde os trabalhos de Richard Wilkinson e Kate Pickett [1], que «as sociedades igualitárias funcionam quase sempre melhor» e que existe, entre outras aspectos, uma correlação entre as que são mais desiguais e as que são mais afectadas pela corrupção.
Sendo a sociedade portuguesa, já antes da crise iniciada em 2008, uma das mais desiguais, não é de espantar que seja tão atingida pelo fenómeno da corrupção. Os cidadãos têm consciência disso. Já em 2012, num estudo revelado em Julho de 2013, 78% dos portugueses inquiridos considerava que a corrupção estava a aumentar nos dois últimos anos e 53% pensava que o governo «está nas mãos de um conjunto restrito de grupos económicos», temendo que «as decisões políticas sejam tomadas sem independência, favorecendo esses mesmos grandes interesses económicos» [2]. O que mostrarão os próximos inquéritos? Dificilmente a percepção será mais positiva, pois toda a realidade se deteriorou entretanto.
Os anos da austeridade e do empobrecimento causado pelas políticas neoliberais, pela alegre subserviência dos governantes aos constrangimentos institucionais e monetários europeus, vão tornando o país ainda mais desigual em termos socioeconómicos (e territoriais, também). A corrosão acentuada da segurança no emprego, o aumento da pobreza laboral e a eternização das situações de desemprego e precariedade favorecem um ambiente de medo e de angústia, mas também de diluição das regras, da deontologia, da cooperação. A captura do Estado pelo poder económico-financeiro multiplica engenharias de concessões e privatizações que corrompem as missões do Estado (que deviam ser a orientação para o bem comum, e não para os interesses privativos nem privados). Ao mesmo tempo, essa captura instaura procedimentos que fragilizam a ética de serviço público, as instituições públicas, os vínculos cooperativos e solidários, os valores não-mercantis (a dignidade, a integridade, a honra, etc.).
Este país em que os recursos são transferidos do público para o privado e em que os rendimentos são canalizados do trabalho para o capital, dos cada vez mais pobres para os cada vez mais ricos, «só» é de crise para a grande maioria. Para os outros, é um campo imenso de oportunidades de negócios, mais ou menos lícitos mas plenos de promessas de lucro. Quando os enquadramentos legais e institucionais são frágeis, ainda por cima num ambiente social em que a acção colectiva de contra-poderes cidadãos (sindicais, associativos, etc.) é insuficiente, os ambientes altamente competitivos e a promessa de lucros frágeis, no contexto atrás descrito, promovem todo o tipo de práticas lesivas do interesse público, corrosivas do bem comum. Mesmo sabendo que parte das dificuldades da acção colectiva também resulta da própria situação de crise – que leva os que mais precisam da mudança a dedicar todo o seu tempo à sua própria sobrevivência diária –, não podemos deixar de investir as forças que temos na organização do combate feroz a este sistema criado para gerar mais desigualdades, mais corrupção, mais vidas perdidas. O nome desse sistema é neoliberalismo e, por agora, os presos nas malhas da desigualdade somos nós.

sexta-feira 5 de Dezembro de 2014 - SANDRA MONTEIRO EM LE MONDE DIPLOMATIQUE

PORQUÊ?


EU SEI QUE VOU TE AMAR.- Vinicius de Moraes y Maria Creuza (Letra y subt...


Louis Armstrong, Ella Fitzgerald - Cheek to Cheek - E VOU-ME LÁ SENÃO PENSO EM COISAS QUE NÃO DEVO


DITO

TINHA TANTA CARÊNCIA, MAS TANTA
QUE DIZIA QUE NÃO PRECISAVA DE NINGUÉM

quinta-feira, 18 de dezembro de 2014

MAGNÓLIA DA PRAÇA DA LIBERDADE


A MINHA VIZINHA


COM DEDO E TUDO


Antonio Variacoes - Cancao Do Engate- E DEPOIS TAMBÉM HÁ ESTA


O corpo é que paga - António Variações


"FRANÇA GESTICULA... MAS NÃO DIZ NADA"

Irão, Síria, Rússia, Gaza: a diplomacia francesa parece ter-se colocado a reboque dos neoconservadores americanos. Reagindo de forma trapalhona aos acontecimentos mais mediatizados, reponde com intervenções armadas e lições de moral. Dominique de Villepin, que inspirou a oposição da França à Guerra do Iraque, recusa esta orientação geral e sugere um outro rumo.

Le Monde  Diplomatique

Uxía - Eu en ti


A REALIDADE E A FICÇÃO

As palavras não interessam, ouvi ontem e pensei: como metáfora até pode ser interessante.
Os corpos não interessam e por aí fora.
Já tinha ouvido dizer "nada interessa, nada tem interesse".
"Dás muito valor às palavras". Fiquei a pensar naquilo por momentos.
Há pessoas atrevidas a falar, que vão descascando camadas e camadas do segredo e calam o cerne das questões, julgando tratar-se do real e da realidade.
Pessoas que se rasgam para que nelas se acredite, mas a magnanimidade acontece raramente.
Pessoas que têm a coragem da raiva sabendo que estas só lhes trás derrota.
Não era o caso.
A cidade que corre alternando casa e árvores e pessoas - realidade ou ficção - venho de Metro, sol de Inverno, a pensar, a sentir ausências, descalça no corpo todo, ficção ou realidade?
Aprende-se a sentir calor quando está frio e funciona muito naturalmente ou não funciona mesmo.
As palavras não interessam dizem as pessoas que já se fartaram do mundo mas que mesmo assim não o trocariam pelos pregos do caixão e que ainda esperam construir a sua felicidade dançando ao som duma canção.
As palavras não interessam, belo tema que me era oferecido assim ali, entre a sopa de nabiças e os filetes de pescada. Bebi um gole de maduro tinto para mastigar bem o que acabava de ouvir.
As palavras escolhem-me, começam a parecer-se com os mosquitos cá de casa, preferem-me e eu quase me rendo.
Soergui-me do copo e pensei: que bom é eu não acreditar em todas as coisas a que me habituei e, socorri-me disso.
Quantas  boas palavras se escondem por trás de modos trabalhados e cultos de seres socializados.
Realidade ou ficção?
Quando nos baseamos nesta dicotomia precisamente quase duma calma bárbara pois tudo está contaminado de imitação.
O que é o real, a realidade e a ficção?
Encontramo-nos aqui num sorriso único, um sorriso com arte, um sorriso que nos derrete de prazer.
As palavras são necessárias, tão necessárias como as agulhas digo eu, para alinhavar a vida, porque a vida alinhava-se eternamente.
Podemos viver sem agulhas?
Podemos, mas não é a mesma coisa.

quarta-feira, 17 de dezembro de 2014

Araucaria-angustifolia-Celorico

Há uma espécie de grandeza na imutabilidade aparente, que resiste às mudanças do mundo ou ao correr das estações. Na versão vegetal, os epítomes da constância são as coníferas: não é que não mudem, mas fazem-no devagar ou de um modo subtil que escapa aos olhares desatentos. Não têm floração vistosa, e todo o santo ano se vestem de impertubável verdura. Se as olharmos de perto, vemos despontar as pinhas e notamos o verde mais fresco da folhagem recente. Mas às vezes têm copas tão subidas que é impossível escrutiná-las com o olhar. Baixamos os olhos para inspeccionar os despojos que vão largando no chão: aqui um galho, mais adiante uma pinha. São sinais de vida em quem parece ter deixado de crescer, instalando-se no que é, para a nossa escala temporal, uma reconfortante eternidade.

À entrada da Primavera, solicitados pressurosamente pelas folhosas que se vão revestindo de mimosos rebentos, aqui ficam as duas mais-que-seculares araucárias-do-Brasil da Casa do Campo, em Celorico de Basto. São árvores como estas que nos alimentam a vista durante o Inverno; passam agora para segundo plano, mas sabemos onde reencontrá-las, constantes e fiéis, sempre que quisermos

DO BLOG DIAS COM ÁRVORES

La Música en Tiempos de Velázquez / The complete album / Ensemble La Rom...


ENORME VAZIO


terça-feira, 16 de dezembro de 2014

Brahea-armata

Bussaco

Richter Bach The Well-Tempered Clavier Book BWV 846 - 893.wmv & bonus


de AMADEU BAPTISTA

VIAGEM NOCTURNA


estrangeiro em lisboa, venho aqui para descobrir
bach nas avenidas novas e algumas mulheres sentadas
nas escadinhas do duque. esta é uma cidade odiosa, de tão branca
que é – e suja, sempre a lembrar-me do que devo esquecer
neste rio sem naus, mas cafres insuperáveis. o certo
é que durmo na travessa dos fiéis de deus com frio e agastado pelos ruídos
da praça, enquanto tu, camões, pareces impassível à arruaça
e na tua sereníssima imanência nem dás pela promiscuidade citadina.
odeio, abomino esta gente que não me olha nos olhos, e tem, abertamente, um linguajar
de réptil, sem matriz, catedral, solenidade: anda na rua como se fosse cega
e acresce ao desvario um esbulho de luz incoincidente com a minha intratável entoação nortenha, que, talvez, ao antónio barahona não destoe, já que pede por nós em grego,
e aramaico, e árabe, sem que, apesar disso, muito se compraza. lisboa a estas horas
nem sabe o que é a chuva, a água, o tejo – ocupada nas compras
e sem novas de ulisses, ou das barcas, vibra de cheiros maus pelas vielas,
que o fado, de alguidar e faca, mais arrevesa do que sabe aproveitar.
como viver aqui me é desconcerto e acirra a vontade de morrer: vejo este pessoa
de bronze à porta dos cafés, a ser contaminado por uma freguesia tão absoluta
e primitiva que lembra o estado novo que vomito, vomito como um corvo.
se por este caudal viesse, ao menos, o cesário, talvez transfigurasse a aversão
em poema e o sarcasmo alinhasse na rua do trombeta algum montante de ternura avulsa. mas não. eu até em telheiras não estou bem, esse lugar de múltiplos desgostos, onde perdi, além do amor, um cão, um cão quase redentor. ah, lisboa: hoje, às três e meia, vai pelo mundo uma promessa de orgasmos pela paz universal, mas de ti nada se espera,
alheada que estás das coisas transcendentes, com a cauda entre as pernas e o olhar
sem vislumbrar o horizonte, onde uma virgem seminua de novo dançaria para ti,
se merecesses, ou a chulice encartada não prevalecesse. tivesses tu coragem
e ias a s. bento queimar o molho aos torvos que, para seu governo, nos andam a tramar, ou viravas 
a mesa, ou partias a louça, desterro nosso sem qualquer desterro.
serias, por uma vez, implacável, a fazer corpo com o futuro, em nome do que vale,
sem misérias ocultas e esperança justa. mas não. tu só te agastas pelo que é inútil,
com poesia melíflua do quotidiano e centros comerciais a liquidar enigmas estúpidos. olha as pontes, lisboa. olha, lisboa, os teus subúrbios. há mais beleza na pedreira
dos húngaros, ou nas arribas de cacilhas, que tudo em volta do castelo, salvando-se, talvez, pelo sortilégio, são domingos e as paredes calcinadas pelos incêndios
perseverantes, e onde eu, às vezes, vou, não para falar com deus, que não existe,
mas para apreender um pouco mais de bach, na parte que lá mora,
e ver, ao alcance da mão, outras mulheres sentadas, sempre à espera de um algum milagre avulso, algum ligeiro terramoto que as estremeça. é pena que o bocage, lisboa,
cá não esteja: cansado da bicheza, por certo encorajava diogo alves a regressar
do enforcamento para dar continuidade às obras de limpeza a que deu início
com a quadrilha, ali para o aqueduto, para acabar de vez com a cidade branca, deserta,
a matar os távoras que pode, ou quem resiste à ignomínia de estar à mercê de gente medíocre. pergunto pelo almada e venho vê-lo a alcântara, ao cais de embarque,
à margem de belém e os seus pastéis, de nata e presidência: apaziguam-me mais
estes painéis, de alvoroçada partida e descoberta, que uma ida à gulbenkian,
ou ao príncipe real, se bem que nos seus jardins a noite se suspenda
e um sortilégio vele, entre os ligustros, a noite imensa.
mas o almada não era de lisboa, tal como não era o botto,
(ou o herberto, a natália: gente de ilha/ gente de quilha, digo eu,
que também fui concebido numa ilha do porto, e se quisesse não, ah, não
enlouquecia), tal como não são de lisboa os habitantes de lisboa,
ou nós, artistas desta hora, que, não sendo de alguma parte, vamos da graça a alfama
com o coração apertado, num vinte e oito que nunca tem destino.
ah, que desgraça não sermos de saturno, que desgraça a nossa transcendência não ir além da gare do oriente e ter de estar sujeita a um restelo de velhos e furores adolescentes, sem génio nem remoque, mas sempre, e só, tormenta.
é que de adolescentes nem é bom falar: à luz do lampião, eu vejo-os pelos bares a cair
de bêbados, sem mãe que lhes acuda, ou tirocínio, que o mais que sabem
é exctasy e shoots, assim, em inglês, já que ler e escrever na língua de que são
lhes passa a milhas, no caso americanas: as jeans puídas e os cabelos soltos,
que não vêem sabão vai para semanas, a beneficiar, sem que o suspeitem,
o neo-liberalismo, são o sem sentido de uma rebelião
sem turbulência, manada para abate um dia destes. e quanto a velhos,
estamos conversados: a vetustez de oitocentos anos, nem para os sapatos mija,
ou desfeiteia viúvas, de pátria ou sordidez. ah, lisboa, nem o putedo infrene
dos teus becos é valia que baste. eu, que não sou cliente, atrevo-me a dizer
que não há puta mais repugnante que a puta de lisboa, sendo lisboa
a puta desgrenhada que se vê, que nem um bom mergulho purgaria
ou, ainda que por empréstimo, poria algum feitiço langue, ou dengue, ou o que fosse. mulher sentada que valha em lisboa é, tal como eu, estranha a estas paragens:
falo de uma eslava que conheço, que é bela como a planície alentejana, assim como são belas as cabo-verdianas que se sentam na relva para que o esplendor coaja – coaja
e ponha em marcha –  a indizível matéria do desejo. um poeta cai no seu campo electromagnético e é como se entrasse no mar ou no regaço de um sonho onde a canela, a mandrágora e o rábano picante se reunissem para um manjar de deuses, irrecusável. detestável lisboa, que posso mais dizer para contrariar-te, mesmo a pagar imposto,
com e sem valor acrescentado, além da derrama? desde que o fialho de almeida
se foi que os teus gatos, lisboa, são ramelas andantes, a comer do próprio vomitado,
sem miados à lua e cenas langorosas nos telhados, a incentivar amantes. há, é claro,
as coisas do botelho, onde tu, lisboa, talvez não por acaso, apareces vazia no retrato,
sem notícia do ajuste de contas necessário com os cobradores de impostos, as raparigas de cabeça oca, os rapazinhos lúbricos dos ginásios que se enfeitam para os rapazinhos lúbricos dos ginásios, as matronas do chá, que enfermiços canídeos arrastam pela trela,
os homens de negócios, cinzentos, como sempre, a traficar crianças e assassínios,
e os cônsules, os tribunos, os pretores, e até os sem-abrigo, que dormem
nos portais e perderam, entre tudo o que há para perder, a clareira após o abandono.
há, é claro, esse secreto adeus do baptista-bastos, a enredar real na realidade
e a viajar por uma deriva ignóbil, nas ruas da amargura, a fazer do obsceno obra acabada, como só pode ser o que é do homem. há, é claro, o gomes leal, o o’neill,
ou o cardoso pires, com anjos escarlates a tremeluzir nos céus, por pura limpidez
de sensualidade e ancoragem terna. mas tu, lisboa, não podes entender a aristocracia
que há no povo, não podes crer no poder da arraia-miúda proto-contemporânea,
nem mereces o vítor silva tavares, a congraçar a emenda e o soneto, sem mais tristeza possível  que a dos barcos que passam ao largo do cais das colunas,
enquanto o café gelo não tem outro destino do que deixar de ser a sede radical
da carbonária para se transformar em nova decadência de lambris escuros,
sem mário cesariny e sem luís pacheco, sem vergílio martinho ou ernesto sampaio,
sem antónio josé forte ou manuel de castro. melhor fora, lisboa, que fosses moura, ainda, e que às trindades se não ouvissem sinos, mas o sumptuoso grito do almuadem. ouvindo o chamamento, sabendo que a cotovia convocava à oração, ias, por fim,
lavar-te. e, assim, lisboa, talvez fosses o brilho verdadeiro de que brilhas


ao sol, como uma ave –  muita branca por fora, muito negra, por dentro.

© do poema Amadeu Baptista

Às Vezes O Amor (Sérgio Godinho)


segunda-feira, 15 de dezembro de 2014

TULIPEIRO DA CASA DAS ARTES


Andres Segovia Capricho Diabolico, Op.85


AS FOLHAS DO MEU MORANGUEIRO


SOU UMA FELIZARDA

Decido sobre os meus dias.
Pergunto-me todos os dia: o que vais fazer Helena? E decido.
Claro que sei que podia ser de outra forma, mas decidi assim.
Claro que é preciso dar-me bem comigo e nem sempre me dou.
Posso dar-me ao luxo de ir visitar uma gárgula ou mesmo um corcunda feroz.
Não se julgue que não tenho passado por alguns cataclismos, só que alguns são recorrentes e passaram ao grau de familiares.
Sou uma enamorada da vida e pratico este namoro todos os dias.
Quando a solidão me apanhar, se algum dia acontecer, que me apanhe com 3 pares de meias grossas, sempre ficarei mais quente à espera que passe.
É certo que vivemos dias em que a cabeça gela, mas tenho a vantagem de qualquer chapéu, boina ou carapuço me ficar bem.
Tenho tempo para cultivar recordações.
Não tenho a chave para a vida, se a possuo é enferrujada mas mesmo assim uso uns truques, deixo a porta encostada a parecer que está fechada, é perigoso eu sei.
Sou uma felizarda, tenho os cinco sentidos a funcionar, não tenho medo de dizer não nem sim e não me preocupo em demasia em defender-me, já que acredito que os outros têm o bom senso de se defender de mim (rio).
A minha história de vida até aqui é encorpada e esplêndida por que não dizê-lo.
Fui e sou amada.
Há pessoas que não simpatizam comigo, o que me satisfaz de sobremaneira.
Sou uma felizarda umas vezes sinto-me lua outras, sol.
E pronto vou continuar a minha história de vida, não se prendam comigo.

CAMÉLIAS

PALÁCIO DE CRISTAL


«Há dias que gosto do vale, de estâncias mais amáveis. Outros dias em que o minuto mais grato é o da despedida para a serra. Em certas épocas a cidade é deliciosa e soberanamente feiticeira; o Porto por exemplo. Quando se toma aquele eléctrico 20, que sobe a Rua de Santo António para a Constituição e parece em seu rodeio ir dar volta ao mundo, tão vagaroso, como se fosse com medo de se meter pelas casas dentro ou esborrachar os paralelipípedos da calçada, oferece-nos no rosicler de Março as mais sedutoras iluminuras. Cada moradia, nesse circuito sem fim, tem o seu quintalinho, e cada quintalinho suas plantas floridas ou enfolhadas e seus relvados. Raro aquele que não ostente a sua japoneira, a qual é como uma rainha de Sabá postada a cada canto a dar as boas-vindas ao forasteiro e a encher-lhe a alma de jucundidade. O Porto é a cidade das camélias por excelência e elas realizam ali o milagre de tornar suportáveis e até amenos dias soturnos como os domingos a instilar ora chuva, ora sol, ora bruma, intencionalmente inglesados, dir-se-ia.»

Aquilino Ribeiro, Geografia Sentimental (1951)



Dead Combo - Blues da Tanga- para começar o dia


domingo, 14 de dezembro de 2014

TANTA COISA PARA DIZER

e não consigo articular palavra...
As palavras estão todas na garganta, ora sobem ora descem.
Ficamos velhos quando vemos morrer tudo à nossa volta, não é?
Sinto-me nostálgica mas é próprio da época, não é?
Não, não é, conheço-a bem e de outros carnavais.

Villa Lobos - Valsa da dor


o sistema

INTERESSANTE

Fernando Bouza, catedrático de História Moderna da Universidade Complutense de Madrid, esteve em Lisboa para duas conferências na Fundação Gulbenkian, a propósito da exposição A História Partilhada. Tesouros dos Palácios Reais de Espanha.
Numa falou sobre Isabel de Bragança, uma princesa culta a quem se deve o Museu do Prado, que trocou um “Rio de Janeiro exuberante” pela Madrid do tio e marido, capital de um reino “entre a sombra e a luz”. Na outra abordou o Portugal dos Filipes, cheio de medos, esperanças e contradições.
Historiador generoso, Bouza é autor de uma extensa bibliografia centrada na política e na cultura da alta Idade Moderna, em particular do Século de Ouro espanhol, com vários títulos dedicados à monarquia hispano-portuguesa de 1580-1640, sobretudo a Filipe II de Espanha, I de Portugal (Portugal no Tempo dos Filipes; D. Filipe I; Cartas para duas Infantas Meninas: Portugal na correspondência de D. Filipe I para as suas filhas).
A exposição da Gulbenkian e as duas conferências foram o pretexto para uma conversa sobre Isabel de Bragança (1797-1818) e Filipe II (1527-1598), “o rei dos papéis”.

Isabel de Bragança é uma princesa praticamente desconhecida em Portugal. Como é que, enquanto rainha, é vista em Espanha?
É vista, fundamentalmente, na sua relação com a fundação do Prado e as origens do Museu Arqueológico Nacional, duas das maiores instituições culturais espanholas. Do ponto de vista histórico, é uma figura muito menos tratada do que deveria porque não teve filhos , não se converteu em mãe de reis. Isto fez com que os elementos culturais e simbólicos que a rodeiam estejam mais estudados do que os elementos políticos. Em qualquer caso, Isabel de Bragança está na memória cultural hispânica e até universal através do Prado.
Como é que o Prado acontece na sua vida? Ainda que sendo uma infanta muito culta, ela morre muitíssimo jovem e o Prado parece um projecto de alguém com mais experiência de vida…
Ela é especialmente interessante porque é a primeira rainha depois das invasões francesas, num momento de grande transformação política em que surge uma nova ideia de nação em Espanha, da coisa pública. Creio que a fundação do Prado tem a ver com esta ideia de tornar conhecidos do público os bens da coroa. Possivelmente, noutro momento da história, mesmo que a rainha fosse, como esta, muito culta, não teria conseguido fundar o museu.
Porquê?
Isto só se torna possível porque estamos num período de mudança de conjuntura, da passagem a um novo regime. Depois, há várias histórias sobre a relação da rainha com o novo museu. Umas dizem que Fernando VII, um monarca com muito pouco gosto, se limitou a aceder ao pedido que lhe fazia a rainha, que não queria que as pinturas que saíam das paredes do seu palácio fossem confinados a um armazém. Outras versões falam de um projecto conjunto, do rei e da rainha, que ela acaba por patrocinar…
Podemos dizer, então, que o Museu do Prado é também uma obra de regime, um veículo de propaganda a uma nova ideia de nação?
De certa maneira, sim. Mas sempre vinculado à figura de Isabel de Bragança, uma princesa que vem do Brasil. É a primeira rainha de Espanha que esteve na América e esta sua vinculação ao continente americano faz com que se estabeleça, de imediato, a ligação a outra Isabel da História de Espanha, a Católica. Esta ligação dá-lhe um carácter fundacional. Há como que um eco contínuo nas metáforas, como se se tratasse de uma nova Isabel que traz a América, como antes a Católica, com Cristóvão Colombo. Isabel de Bragança é a primeira encarnação de uma rainha moderna para a nação espanhola. Neste sentido, é preciso, de facto, olhar para a criação do Prado como um acto de propaganda a um tempo novo.
Mas, ao contrário de Isabel, a Católica, Isabel de Bragança não tem qualquer participação política…
Não se sabe muito, mas é possível que o seu papel [político] tenha sido maior do que aquele que se conhece. A sua antecâmara no palácio real transforma-se num espaço político, em que se debate quem pode e quem não pode entrar. Mas, a morte muito prematura inviabiliza qualquer presença no plano da governação. Estou convencido, no entanto, que ela tinha ambições políticas, que não queria ser apenas uma rainha da cultura e das artes.
Como é que descreveria a Espanha que Isabel de Bragança encontra? Já falou de um reino em transição…
Em transição, sim, mas um reino que lhe deve ter parecido incrivelmente diferente da realidade que ela conhecia. Basta pensarmos que ela chega a Cádis vinda de um Rio de Janeiro exuberante – é uma princesa que tem mundo, que fala inglês, coisa raríssima na corte espanhola da época, sabe desenhar, tem uma formação muito esmerada. É uma princesa cosmopolita que se encontra com uma monarquia que se move entre a reforma e a revolução.
O seu marido, Fernando VII, é um personagem muito querido – não há dúvidas sobre o amor político que os espanhóis lhe tinham -, mas é um monarca que não se resigna a perder o poder que anteriormente tinham os reis, ainda que queira usar esse poder para fazer reformas.
Assim sendo, Isabel chega à Cádis da Constituição de 1812, uma das primeiras constituições transformadoras europeias, mas que, ao mesmo tempo, quer restaurar a antiga corte, mais absolutista. Chega a este mundo que é como uma terra de sonâmbulos, entre a sombra e a luz. É o mundo de Goya, que aliás pinta para Isabel de Bragança uma peça estupenda que está na exposição [Caridade de Santa Isabel de Portugal, 1816] - é uma grisalha, bela metáfora para este mundo de sombras que ensaia uma transformação mas que, ao mesmo tempo, tem medo da mudança.
Resumindo: sabemos muito pouco sobre as ideias políticas da rainha, mas os seus projectos culturais são claramente os de um tempo em transformação.
Quando ela chega, que relação têm os espanhóis com a monarquia?
A constituição de Cádis é transformadora, a nação sonha com a vinda do rei, que está em França, e espera que, ao regressar, ele venha a revolucionar a vida política. O mundo do pai de Fernando VII, Carlos IV, converte-se no mundo a esquecer; o mundo de Fernando é o da esperança. Há à volta de Fernando quase que uma auréola messiânica que, infelizmente, se desvanece porque ele mostra muito depressa que o que quer é voltar à ordem antiga em que o rei concentra o poder.
Como reage Isabel de Bragança a este casamento em clima de mudança?
Possivelmente há um primeiro choque que é pessoal e está ligado à própria diferença de idades entre ela a Fernando: não podemos esquecer que se trata de uma sobrinha e de um tio [materno]. Depois há o choque de que falámos, Cádis e Madrid face ao Rio de Janeiro, de onde vinha. Mas sabe-se pouco. O que é mais conhecido em relação à rainha é o Prado e a sua morte, que é muito interessante.
As crónicas da época são tenebrosas e levam a que lhe chamem a rainha que morreu duas vezes…
Sim, é verdade, a acreditar que lhe fizeram uma cesariana sem cuidados, para tentar salvar o bebé, quando achavam que a rainha estava já morta e não desmaiada, como era o caso. Há um texto de época que fala deste episódio, dizendo que os médicos da corte a trataram “à maneira antiga” e a transformaram numa “morta ambulante”. Neste texto defende-se que há que transformar a medicina, que a actualizar. A rainha era muito gorda, muito mais gorda do que parece nos retratos. O autor deste texto é um médico americano que inventa uma máquina de banhos para tratar a obesidade da rainha [Jean Leymerie, La Medicina Constitucionalizada Y Revolucionada por las Ciencias Exactas]. Há um verdadeiro debate sobre como tratar a rainha, que mais não é que um debate entre uma velha ordem e uma nova que evoca, uma vez mais, o tal reinado de sombras, de transição.
Mas ela morre na sequência do parto?
Sim. Mas o que aqui é interessante é que se publica um texto sobre a morte da rainha, entrando na esfera privada dos reis, falando sobre eles. No século XVIII isto teria sido impensável porque não havia este debate público sobre a monarquia, um debate liberal. Ainda assim , Isabel de Bragança é uma personagem desconhecida. Fala-se mais dela pela fundação do Prado e pela fundação do real sítio de La Isabella, que Fernando mandou construir para homenagear a rainha.
Que lugar é esse?
Uma povoação pequena nos arredores de Madrid, na zona das termas, à maneira do que se fazia nas colónias, e que hoje já não existe. Ela vê os projectos desta cidade, mas, tal como aconteceu com o Prado, não a vê concluída porque morre entretanto.
Porque é que La Isabella já não existe?
Porque foi inundada por um grande lago que surgiu com a construção de uma barragem. Hoje é uma ruína. Perdeu-se, ao contrário do Prado, que cresceu e é hoje o verdadeiro lugar de Isabel.
Já disse que Goya pintou para ela, mas qual era a relação da rainha com os artistas locais?
Isabel amava as belas-artes e sabia desenhar. Sabemos apenas que há um pequeno grupo que está por trás da rainha e que é o responsável pela ideia do Prado, projecto que ela depois patrocina. É [Pedro de] Madrazo, o primeiro historiador do museu, que o conta. Temos dela, no entanto, a imagem de uma monarca-artista. É como se tivesse havido uma sublimação da majestade real até ela ser transformada numa artista, que é também uma forma bonita de compreender o carácter sobre-humano dos reis.
O que é que ela quer para o Prado? Que modelo segue?
O modelo é o das bibliotecas reais públicas, que em Espanha havia desde 1711. É um modelo francês, das colecções napoleónicas, que é também o do rei D. José I [irmão de Napoleão Bonaparte], um modelo dos “afrancesados”. O Museu Josefino, que a ele se deve, é o verdadeiro antecessor do Prado.
Mas não sabemos o que Isabel de Bragança queria fazer de diferente, se é que queria, porque morre em Dezembro de 1818 e o Prado só é inaugurado no ano seguinte.
Mas o museu insiste nessa herança da rainha…
É verdade. Esteve sempre vinculado à memória de Isabel, e podia tê-la apagado. A história está cheia de memórias pagadas. Mas Isabel ficou no Prado.
E porquê, já que a ligação, ainda que fundadora, é tão breve? 
Bom, se posso ser malicioso, digo que que a explicação é simples: em África há um ditado que diz que a memória vai ao bosque buscar lenha e traz de lá a lenha que quer, o que significa que cada um de nós é feito de fragmentos, que a nossa identidade é um somatório de memórias sobrepostas. A mim parece-me que, neste caso, perante a obrigação de optar entre Fernando VII e Isabel de Bragança, ninguém tem dúvidas em escolher a rainha. Há uma ligação a este desejo da rainha de que as colecções fossem expostas, partilhadas.
A exposição passa também por outra figura que, ao contrário de Isabel de Bragança, está muitíssimo estudada – a de Filipe II de Espanha, I de Portugal. É verdade que Filipe II, filho de uma portuguesa, Isabel de Portugal, tinha uma curiosidade genuína sobre a terra da mãe ou veio apenas para reclamar um trono que dizia ser seu por direito?
[Silêncio longo] É uma pergunta difícil. Filipe II tinha uma imensa curiosidade sobre tudo: por Portugal, pelo Japão, pela China. Temos à disposição uma espécie de crónica sentimental de Filipe II em Portugal que são as cartas que vai escrevendo às filhas. São escritas na primeira pessoa e, quando as lemos, percebemos que Portugal não é apenas uma curiosidade – é uma peça fundamental no seu esquema político. Um esquema em que tenta recuperar a herança da sua mãe, mas em que tenta também responder aos pedidos de Portugal. Por isso acho que não há apenas curiosidade, mas um interesse verdadeiro e, por vezes, um conhecimento dos assuntos portugueses que chega a ser surpreendente.
Em que é que se vê esse conhecimento?
Nas suas leituras. Filipe II é um monarca difícil porque não gosta que o vejam. É um monarca oculto… Tem uma torre na alcáçova de Madrid e é de lá que faz o seu jogo de olhar sem ser visto. Quer ser como uma espécie de personagem teatral – fazer uma aparição como um deus ex machina e resolver todos os problemas.
A sua relação com o mundo é, de alguma forma, de papel. É o rei dos papéis [risos]. Leu muito, e é através dessas leituras que, creio, conheceu muito da vida portuguesa. E depois há Madrid, onde viveu a maior parte do tempo, uma cidade com uma facção portuguesa muito forte. Por exemplo, Cristóvão de Moura esteve em Madrid à volta da princesa Joana [filha dos imperadores Carlos V e Isabel de Portugal] e do Mosteiro das Descalças; o próprio Filipe teve uma aia portuguesa, Leonor de Mascarenhas, uma grande coleccionadora de arte… Mas a ligação de Filipe a Portugal, uma grande potência do século XVI, faz-se mais pelas suas leituras do que pela educação da mãe.
Como é que ele reage ao chegar a Lisboa?
Fica absolutamente encantado com a cidade, com a sua localização. É preciso ver que ele chega de barco e mora numa cidade interior, abafada. Falou muito bem dos jardins e das quintas nos arredores, do Palácio da Ribeira, das ruas. Lisboa é uma cidade imperial, sem dúvida muito mais impressionante que Madrid. Ele chega com uma corte muito divertida, traz os seus bobos e pessoas que lhe são muito próximas, que é como quem diz, traz os que fazem dele rei. E todos ficam muito surpreendidos com a quantidade de pessoas de cor que há na cidade…
Não havia negros em Madrid?
Não, não havia. Em Sevilha sim, que é talvez a única cidade espanhola que se pode comparar a Lisboa em 1580. Mas em Sevilha não há corte, apesar da cidade ser imensamente rica. Dito isto, é preciso não esquecer que, apesar do encantamento, Lisboa e Porto são saqueadas. Filipe II não toma Portugal apenas na base na negociação, toma-o também com base na conquista, nas armas.
Ele surpreende-se com a cidade – diz “quem não viu Lisboa não viu coisa boa” – e faz nela uma entrada como não fazia em Madrid: com pompa e muito luxo. Lisboa é a nova Roma, verdadeiramente imperial, e torna-se o cenário perfeito para exibir a grandeza do rei. Há algo de culminação do seu reinado nesta entrada em Lisboa. Bom, mas é preciso dizer que a situação de Portugal é muito complicada, com problemas no Oriente, no Norte de África, com o desaparecimento de D. Sebastião, a morte de Henrique I…
Há uma crise portuguesa a que Filipe II responde, primeiro que tudo, com violência…
Claro. Filipe entra em Portugal pelas armas – é quase sempre assim, e quando não é, entra com ruído de armas – mas ele é a resposta que alguns portugueses procuraram. O documento com que Filipe II se faz rei de Portugal, é português. É um documento de 1499, o mesmo com que D. Manuel se converte em rei de Castela. Neste sentido não podemos falar apenas de um movimento de expansão de Castela. Havia portugueses que quiseram Filipe ou que, pelo menos, defenderam que a solução para a crise tinha de vir de fora.
Que portugueses eram esses? Algumas facções da nobreza?
Bom, há dois Filipes II: o imaginado e o real. O primeiro, esperam, vai trazer um governo estável, justiça, quase como se fosse um Filipe II messiânico, com uma aura sebastianista. O segundo, o verdadeiro, faz uma aliança com as elites territoriais e, digamos, “ressenhorializa” Portugal.
Como é que faz isso?
Com um pacto informal estruturado nas Cortes de Tomar – nele Filipe II diz que vai ser rei de Portugal mas que o governo do país vai depender dos nobres que o aceitarem. É um período dourado para a fidalguia portuguesa.
E em que é que se nota essa aparente autonomia que o rei concede à nobreza?
Nota-se, por exemplo, num importante órgão que funda para o aconselhar nas questões portuguesas – o Conselho de Portugal. Como o rei está ausente, compromete-se a que haja sempre um grupo de portugueses na sua corte para o assessorarem nos assuntos que dizem respeito a Portugal. Este conselho é a memória de Portugal, um país que, com Filipe, é o de um rei ausente. Esse conselho está dominado por fidalgos portugueses – a Casa de Bragança está muitíssimo presente.
E esta ordem mantém-se até ao fim da presença dos Filipes em Portugal?
Não. Esta ordem estabelecida por Filipe II – soberania para os Filipes, mas governo efectivo para os nobres portugueses -, muda em finais dos anos 1630, e quando ela muda, 1640 começa a desenhar-se. É preciso não esquecer que, entre 1580 e 1640 houve muitas revoltas em Portugal. Os partidário de D. António, Prior do Crato [1531-1595, neto de D. Manuel I] desembarcaram, mas as elites não o seguiram, preferiram que o Portugal dos Filipes continuasse. O Portugal dos Filipes só termina quando se rompe a aliança com as elites locais.
Podemos então dizer, de certa maneira, que o Portugal dos Filipes é também uma ideia portuguesa?
É uma criação portuguesa. Há vários Portugais: há o do monarca ausente, o do desejado (D. Sebastião, que há-de voltar numa manhã de nevoeiro), e o do não-desejado (D. António). Os antonianos – a parte menos conhecida do Portugal dos Filipes e, para mim, a mais interessante – tentam ser aceites em Portugal, recuperar a monarquia, apresentar-se como os herdeiros legítimos dos Avis e, ainda assim, ninguém os quer. Portugal move-se entre querer um príncipe ausente [D. Sebastião], que é mais uma ideia do que uma pessoa; e um príncipe calculado, que é D. Filipe II, e rejeita outro que está à sua porta a pedir para entrar.
Porque é que o país não queria D. António?
Não sei, mas continua a não querer. Na colecção de reis de Portugal [Círculo de Leitores] há volumes sobre os filipes, o que me deixa muito contente, mas não há nenhum sobre D. António, o que me deixa intrigado, porque ele é uma figura muitíssimo interessante. Talvez não o quisesse porque D. António não pode resolver os problemas do país.
E porque é que não pode?
Não tem a força que D. Filipe tem. Não tem as alianças, não tem a América, não tem a prata… Se Portugal pudesse escolher apenas com base em razões sentimentais, talvez D. António tivesse mais hipóteses. Muitas das revoltas que os partidário de D. António põem em marcha não têm seguimento, o que quer dizer que Filipe conta com aliados locais. Os domínios dos Braganças e dos Aveiros são enormes. Filipe não poderia controlar Portugal sem os nobres e isso é claríssimo. Para o fazer sem eles teria de ter vindo com centenas de juristas, letrados, soldados.
Não chegamos, então, a ter uma corte ibérica, mas duas cortes…
Isso é assim no tempo do arquiduque Alberto [1559-1621, sobrinho de Filipe II e vice-rei de Portugal]. Nessa altura Lisboa tem vida de corte mas, depois, com os governadores, que podem ser condes, marqueses ou bispos, ela perde-se. E com isso Madrid transforma-se, também, numa corte portuguesa. Madrid é, aliás, uma corte de toda a monarquia: é flamenga, milanesa, napolitana… Na Igreja de Santo António dos Portugueses, por exemplo, faz-se a vida como numa corte portuguesa. Há outra igreja para os italianos, outra para os aragoneses…
É uma corte muito cosmopolita…
É a corte de uma monarquia que tem domínios por toda a parte.
Mas isso também acontece em Lisboa, que ainda para mais é uma cidade de mar. Lisboa não poderia ter sido essa corte?
Sim, se Filipe tivesse trocado Castela por Portugal, o que jamais aconteceria. Pessoalmente, penso que Lisboa seria uma cidade melhor para instalar a corte. Mas ele não tem de escolher entre Madrid e Lisboa, tem de escolher entre Castela e Portugal, e aí não há dúvidas.
Diz-se que Filipe acabou por ficar em Lisboa mais tempo do que seria necessário. É verdade?
Sim, ficou em Lisboa até 1583, mas houve circunstâncias que o justificaram, como a morte do herdeiro [D. Diogo Félix, 1575-1582]. Houve que fazer cortes para jurar um novo. Há que dizer, insisto, que veio para fazer a guerra – uma guerra muito moderna que incluía, até, uma tipografia, que instalou na fronteira de Badajoz e que, durante a noite, imprimia panfletos.
Propaganda pró-Filipe II…
Sim, claro. Papéis com promessas, como numa campanha política.
Depois de se estabelecer, pelas armas, quais são os principais problemas que tem de enfrentar?
Creio que é começar a governar numa monarquia que tem séculos de história e a sua própria administração. O difícil é encontrar um equilíbrio entre os diferentes grupos portugueses. A princípio, Filipe II tem várias hipóteses: ficar, deixar a imperatriz como vice-rainha ou o irmão no seu lugar… Alguns pedem-lhe que castigue os fidalgos e que acabe com as suas injustiças… E Filipe decide voltar a Madrid, estabelecendo as tais alianças com a fidalguia.
Creio que o maior desafio está na reforma da justiça, com a criação de um novo tribunal no Porto [Casa do Cível], as ordenações filipinas… Ele quer muito reformar a justiça porque é algo que lhe é pedido um pouco por todo o país. Filipe recebe pedidos das terras mais pequenas e mais esquecidas…
Que tipo de pedidos?
Que expulsasse os genoveses, porque os banqueiros de Génova tinham juros muito altos; outros que navegasse para a América e os levasse para que pudessem comercializar; outros ainda que impulsionasse as pescas… Todo o tipo de coisas, mesmo dos lugares mais remotos. E ele ia respondendo e instituiu uma política de donativos muito generosa. Gastou muito dinheiro de uma forma a que hoje chamaríamos subornos, mas altura eram “graças”… Isto sempre com o ruído de armas, não o esqueçamos – os saques de Lisboa e do Porto foram muito sangrentos. Ainda assim, desencadeou uma estratégia extraordinária, negociando com os nobres, a igreja, as câmaras municipais, os particulares, as cortes…
Negoceia mas num clima de medo…
Nesta altura de crise vive-se numa atmosfera de medo e de esperança. Uns apresentam Filipe como o salvador de Portugal, outros preferem qualquer outro monarca a um castelhano. O interessante neste Portugal dos Filipes, uma monarquia dual, é que começa a haver um movimento de pessoas e de objectos, um movimento de vidas. Há pessoas que passam uns tempos em Lisboa e depois viajam para a América ou a Guiné… É um espaço mundializado. Quando se decide uma coisa nesta monarquia, como a aceitação de um novo calendário, ela é verdade para Portugal e para Castela, mas também para Itália, os Países Baixos, a América, a Ásia e a África… Goa, Manila, Lisboa, Milão, Madrid, Valência, Rio e México têm de obedecer.
O rei é o mesmo, mas é visto da mesma maneira pela historiografia portuguesa e pela espanhola?
Filipe é um dos monarcas mais controversos da história. Há toda uma lenda negra à volta dele, muito graças à sua vida pessoal. É visto como um monarca tirano...
Isso por causa das suspeitas de que mandou matar o próprio filho…
Sim, a morte de D. Carlos é o fundamento dessa lenda negra. Ele põe sempre os seus interesses, e o seu desejo de poder, à frente dos interesses familiares. É assim que o vêem em Espanha. Em Portugal, Filipe II não é o que tem pior fama – o pior é Filipe IV. E isto é uma coisa que não compreendo, porque Filipe II quebra quase de imediato as promessas que faz a Portugal e, apesar disso, no imaginário português passou à história como tendo cumprido o que prometeu.
No “romance”, as personagens malvadas são Olivares [Conde Duque de Olivares, primeiro-ministro espanhol do tempo de Filipe IV] e Filipe IV. Dito isto, a figura de Filipe II não difere muito de Espanha para Portugal. Com Filipe IV não – é mais bem visto em Espanha do que em Portugal, porque aqui está muito vinculado a 1640 e à necessidade de proteger os interesses da monarquia portuguesa face à decadência da casa real espanhola.
Em Espanha, pelo contrário, a figura de Filipe IV tem sido recuperada nos últimos tempos, como a de um rei que tinha um projecto para a monarquia, que não era só o que gostava de arte. É preciso dizer que a historiografia modernista espanhol se aportuguesou…
O que é que isso quer dizer?
Que tendo por base o impacto que em Espanha teve o trabalho de António Manuel Hespanha, que foi enorme, se pode hoje dizer que uma boa parte da historiografia modernista espanhola do XVI e do XVII o que fez foi imitar as pautas da historiografia portuguesa do mesmo período. Figuras como Pedro Cardim, Nuno Monteiro, Mafalda Soares da Cunha, Ângela Barreto Xavier, Diogo Ramada Curto e Francisco Bettencourt são autores que se lêem em Espanha. A história atlântica espanhola, por exemplo, deve muitíssimo à investigação portuguesa.
Qual é a principal diferença entre os projectos que Filipe II e Filipe IV têm para Portugal?
Filipe II quer um Portugal unido, mas separado: uma monarquia dual, com uma língua e instituições diferenciadas. No final do reinado de Filipe IV estamos perante uma “castelização” de Portugal, algo que Filipe II e Filipe III não tinham feito. Filipe IV queria uma verdadeira união dos territórios – com ele e o conde duque de Olivares há um novo programa político para a monarquia espanhola em que Portugal perde a sua condição de reino.
Podemos dizer, então, que a historiografia portuguesa faz um retrato justo de Filipe II?
Faz um retrato cada vez mais justo. Todas as comunidades têm direito a conhecer a sua história, mas têm direito também à sua própria memória, não se pode impor nada. A transformação em Portugal foi radical – vim a Portugal para trabalhar pela primeira vez nos anos 1980 e, nessa altura, esta entrevista não teria sido possível. Porque nesses anos 80, o período dos Filipes era uma coisa que não pertencia à história de Portugal. Havia um corte, um interregno, um buraco de 60 anos. Sessenta anos de hiato histórico são impossíveis. Esta situação hoje foi corrigida graças aos historiadores portugueses. Em qualquer dos casos falta ainda ver chegar esta mudança de atitude ao grande público, aos livros da escola.
O que é que levou a essa mudança de atitude?
A constatação de que o Portugal dos Filipes é português. E esta é uma mudança extremamente generosa, que agora tem de chegar a toda a agente, mesmo que eu reconheça, uma vez mais o digo, que as comunidades têm direito às suas próprias memórias, mesmo que elas não tenham grande rigor histórico.

J. Público