terça-feira, 11 de setembro de 2012

VIAGEM DE COMBÓIO

Muitos toques, uns com música, outros imitando telefones antigos. Digamos que não há 5 minutos sem ouvirmos um toque de telemóvel.

Muitos abanam a cabeça mesmo enquanto dormem, talvez por estarem já habituados a conciliarem-se com o mundo ouvindo música com auscultadores e dançam com os dedos e alheam-se de tudo. Estão cansados de rodopiarem pelo mundo todo das mensagens que produzem consoante a viagem mais curta ou mais longa, esmiolando as mãos.
Os dedos agitam-se: há raiva, febre, verbo a tornar-se carne. E tornaram-se génios dos dedos alguns e centuplicam de vigor, é como só um tocasse piano para só dois ouvirem.
Vejo pessoas com corações cavados, a garatujar palavras, outras com almas formadas de pedaços. Há os que lhes resta o tédio e os que se lhes adivinha a covardia, a hostilidade.
Há gente bronca e profundamente espiritualista.
Há os que riem muito e os que possuem ironia no olhar. Os esquecidos das amarguras, olham a paisagem ou perscrutam o outro, através do reflexo do vidro da janela.
Jovens garridas, de telemóvel em punho, expõem vidas como se no teatro estivessem e exclamam por outras palavras: "é ela que nos vinga!"; "Abençoada sejas tu...", entornam a alma e não dizem, adiam sempre até à última paragem uma simples frase: "Não falemos por ora nisso...Logo. Fiquemos por aqui".
E continuo a ouvir pedaços de vidas, sem esforço nenhum. As  pessoas falam alto, esquecendo-se que estão num espaço público.
Aqui, nesta esquina, uma diz: "Ó amor, se soubesses o que é andar com estes sapatos (disfarçada de estudante universitária) não dizias que cheguei tarde".
Não, não assisto a uma farsa de Molière, nua e simples, mas da mesma maneira, fico às vezes indecisa sem saber se rir ou chorar.
Tal como nas farças de Molière, a desgraça é pícara, mas a dor que afinal cavalga a farsa, incomoda.
Sinto que era preciso dar "Sonho" a esta gente e não apenas palavras, palavras, palavras, como se dá aos actores de teatro. Sim, quando viajo de comboio parece-me estar a assistir a uma peça de teatro normal, talvez por isso eu goste tanto de comboios.
Os actores são bons e representam banalidades e todos representam o papel do actor principal, nenhum se limita às rábulas ou pequenos papéis, porque exprimem sentimentos verdadeiros. Não se trata de coisas empalhadas, as que dizem têm público.  Uns são público dos outros e assim por diante.
Mesmo assim, alguns têm máscara e assim representam, mas as emoções estão lá.
Claro, que viajar no Alfa e na Linha do Douro não é exactamente igual, mas há igualmente computadores ao colo a alhearem-nos de encontrar o outro que está ali à   frente, pessoas que se riem quando estão tristes e ódios e simpatias se ouvem, e bondade e carácter e humildes e burgueses e Stºs Antónios pequeninos e rodovalhos.
A vida pulula  e a variedade também e são possíveis todas as fantasias.
Abro sempre um livro, mas a meio da viagem está fechado. A cena passa-se  fora daquelas páginas e quem me olhar deve pensar que vê um crustáceo, lembro-me de alguém  ter  dito que Deus o criou com olhos nas maxilas.

2 comentários:

lua vagabunda disse...

Gostei tannnnnnnnnnnnto.

Vi tudo, tudinho o que descreveste.
Até ouvi os télélés, Molière e tudo!!!

lenço de papel; cabide de simplicidades disse...

és uma linda. Obrigada por teres visto tudinho