terça-feira, 10 de maio de 2016

MISSIVAS AO MEU PAÍS

4ª MISSIVA

Querido País,

Onde é que a gente ia?
Tu finges que dormes.
A partir de que idade é que deixaste de ser meu cúmplice.
Ainda não me desapareceste da vida. O problema é que não te esqueço e transporto-te comigo.
Apetecia-me não pensar em ti, mas todos os dias me entras pelos sentidos adentro. Se um dia deixo de acreditar em ti vai ser o cabo dos trabalhos.
Seis anos despovoaram-te, mas nestes últimos nota-se muito.
Demoras séculos a remoer os assuntos, pareces doente mental, aliás há muita gente que te considera atrasadinho, sabias?
Antes tinha sonhos em que voava e nem precisava de abrir os braços, bastava um pulinho.
Andas mal da próstata?
Disseram-me que mijas muito e às pinguinhas.
O que se passa?
Momentos há em que a dimensão da ignorância em que me deixas me magoa muito.
Deixaste de ter cabeça?
Só te vejo os pingos nessa parte do corpo, já que não costumas usar guarda-chuva.
Sei, estás a tentar-me dizer alguma coisa antiga, meio esquecida, honorabilidade disseste?
Não sei se é porque a palavra anda esquecida há muito, estás com os molares a chinelar, mas porquê?
Não te modernizaste? Agora até tens rotundas nas aldeias e nas autoestradas aldeias.
Parece que te escuto, disseste "explicando-me compreender-me-ias ainda menos".
Foi isso que disseste?


foto de Isabel Maria Mendes Ferreira






Entrevista a Marguerite Duras - Parte 2 de 8

domingo, 8 de maio de 2016

sábado, 7 de maio de 2016

CARTAS AO MEU PAÍS

terceira missiva


Querido país,


Continuo preocupada contigo, com a tua magreza.
Sempre tiveste a mania de te dares ares de país livre, mas não passas dum país peão, não discutes, obedeces, não protestas, cumpres, não te revoltas, aceitas tudo e ainda te achas abençoado e dizes que é melhor assim do que amanhecer num penedo a alvoroçar os peixes.
Tens sempre desculpas para tudo. Tenho receio de que o teu tempo se esgote.
Que mania tens de assistir às manhãs ajoelhado. Porquê ajoelhado?
Responde-me por favor.

quinta-feira, 5 de maio de 2016

Atahualpa Yupanqui en Puerto Rico - Segunda parte

CARTAS AO MEU PAÍS

segunda missiva



Meu querido país,

Como sabes eras um velhote de camisola interior com palito na boca muitas vezes e, mesmo assim, gostava de ti.
Um dia quiseste deixar de ter hálito a refeitório e pela mão de Mário Soares,  deixaste-te ir até àquele restaurante caro, em Bruxelas, e entre pancadinhas e abraços das muitas pessoas que lá se encontravam  e que se diziam tuas amigas, depois duma garrafa inteira de comemorações, saíste de lá inebriado.
Quando regressaste eras outro. Saltavas e dizias, todo contente, que nos ias apresentar uns amigos que nos iam ajudar a sair da pobreza em que sempre estivemos.
Esses "amigos" começaram logo por te emprestar dinheiro, muito dinheiro porque te queriam dependente dessa nova vida de novo rico e tu continuavas contente, muito contente, desperdiçavas tudo: canetas, carros, secretárias,  enfiaste sapatos  de salto alto em pés gretados, limpavas com compressas as mesinhas de cabeceira dos hospitais e julgavas que eras rico, muito rico, alguns anteriores inimigos juntaram-se-te  para festas e banquetes, como sempre fazem quando sabem que sai a sorte grande a alguém e tu, de tão obnubilado do juízo que estavas, de nada te apercebias e repetias que todas essas festanças eram em benefício do povo e da economia, que era preciso nos modernizarmos que era apenas o princípio e no princípio tinha que assim ser e... foi, mas o princípio do fim.
Os teus amigos de Bruxelas continuavam que nem esgotos a bolsar e nem sequer te lembravam que tinhas que pagar isso tudo com juros muito altos ou te ficavam com a casa,  família e tudo.

E neste tempo que viajo a uma boneca sem pernas, é curioso como episódios que cuidamos perdidos voltam à tona, e continuo até à medula a ver vespas e gafanhotos nesta terra, ´
e tudo tão claro.

Querido país eu sei, talvez com toda a infância na cara, que te sentes arrependido, embora teimes em dizer que não porque te sentes envergonhado de teres falhado e por muito que penses em reparar a situação já quase nem te revês naquilo que és de facto.
Os teus falsos amigos tomaram-te conta do lar e querem expulsar-te,  agora apenas te recomendam chá de tília para a insónia e depressão.



segunda-feira, 2 de maio de 2016

MISSIVAS AO MEU PAÍS

primeira carta:


Meu querido país,

Há ocasiões como esta que me sinto perto das frases para te compreender mas respondes-me a fingir que me escutas que quase me apetece deixar de conversar.
Vou fazer de conta que continuamos, fica sempre tanto para dizer, tanto silêncio no meio de tudo.
Estava a dizer- te que ao fim de tanto tempo se substituem os artistas como se muda de vento.
Sei que apesar de tudo me escutas, embora faças de conta e aches uma conversa sem nexo.
Resistem-me certas doçuras de memória.
Não quero cair  na asneira de  mágoas secretas, mas que me tens decepcionado muito, tens.
Antes tínhamos dúvidas no que viríamos a ser, hoje essas dúvidas vão-se dissipando e sobre ti começo a ter algumas certezas.
Dizias-me há muito tempo, enquanto caminhavas com passos inseguros, quero ser grande, quero que concordem comigo, quero ter direitos ao mesmo tempo que terei deveres.
Cresceste e tens uma mala cheia de articulações disfuncionais, tens dívidas e os credores pedem-te a alma.
Que é feito de ti meu querido país?
Por onde andas?
Encontro-te tão pouco. Dá-me notícias.

SOMBRAS