terça-feira, 23 de fevereiro de 2021

VER DE PERTO

 Com o é bom vermos de longe manhãs e tardes ensolaradas.

Interrogo o silêncio que me rodeia e vejo de perto uma lagartixa que rabeia parede acima e volta-se na minha direcção. Parece que me olha na sua cabeça chata e me pergunta porquê.

Não sei, respondo-lhe. 

Está tudo vazio mas eu procuro-me.

Vejo-me sozinha a ir para a escola da Trindade, assustadiça no meio da cidade. Tinha medo da professora. Tinha entrado mais tarde quase dois meses devido ao sarampo e estava atrasada nas contas.

Era no tempo do fascismo. Nessa altura quando não sabíamos punham-nos umas orelhas de burro, mandavam-nos ajoelhar no estrado e estar assim toda a manhã a olhar para a parede, depois de termos dado as duas mãos para as esquentarmos com cinco reguadas em cada mão. Uma humilhação tremenda que ainda hoje me lembro, uma dor que se carrega toda a vida. O fascismo pesava muito no nosso franzino corpo.

De novo a lagartixa me interpela e ao meu passado. Volto ao silêncio e ouço o gemer das rolas no silêncio do confinamento, palavra que se passou a usar muito desde o ano passado, significando prisão domiciliária sem crime perpetrado. Informaram-nos que devido ao Serviço Nacional de Saúde estar muito doente por não terem cuidado dele há décadas, não o poderíamos sobrecarregar nem matar a economia, por isso convinha não nos infectarmos com o vírus Sars-Cov-2 que apareceu vindo não se sabe de onde, para dizer que a Vida na Terra não podia continuar assim, a que os governos mundiais não deram nem dão qualquer importância na sua verdadeira essência de mensagem.

Ouço uma voz conhecida: Mudaste muito de aparência, nem te conhecia.

Mais à frente outra voz: Estás igual, pensas o mesmo que pensavas há 40 anos. Não sabia se tinha sido proferido um piropo ou um insulto, mas aos meus ouvidos soou-me como piropo.


Olho para o outro lado e vejo uma gaivota, tinha a certeza - estava no Porto. Era antes da pandemia, ouvia falar várias línguas e  pensava: um dia quando este turismo desenfreado acabar ou abrandar, a terra que me viu nascer, esta bela cidade do Porto, vai ficar mais pobre ainda.

Olho para o Rio e de seguida regresso ao presente e ao futuro.

Emocionei-me quando ouvi a voz do rio, do meu amado e querido rio, que me sussurrou ao ouvido: se soubesse que vinhas aqui hoje, tinha mandado engalanar as minhas margens com bandeirinhas de papel de seda de todas as cores e convidava uma orquestra ´para tocar a música de Bach ou Chopin, os Nocturnos de que tanto gostas, porque quando se gosta de alguém deve-se dizer que se gosta e eu dir-te-ia assim.

Estremeci de comoção porque dentro de mim havia uma espécie de ressurreição com este regresso, o encontro de dois velhos amantes, o Douro e a Helena naquele sítio de sempre, só nosso.

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