Esta senhora toda poderosa no seu grandioso silêncio veio buscar-me mais um amigo.
A morte é uma metáfora que atrasa, que transporta as nossas vidas.
Preparo-me para ir ao velório do meu amigo Aníbal (parece-me inacreditável) e como não sei orar muito bem, concentradamente, resolvi escrever a minha prece para ti.
Sinto-me como se fizesse parte dum coro que lamenta a sorte humana na tragédia.
A morte pesa muito.
Tu fizeste homeostasia toda a vida, cuidavas de regular bem a tua vida, e de repente veio ela e ceifou-te, NÃO LHE PERDOO.
Não sei amigo se na morte temos a possibilidade de continuar a olhar para os tectos pintados a fresco com figuras de anjos roliços de mãos dadas, tu mo dirás.
Hoje mais uma vez, são 10,13h neste momento, vais abrir a porta da Igreja com uma grande chave como fizeste da outra vez, só que hoje não precisas de limpar os pés no tapete, retiraram-no ecolocaram uma passadeira vermelha em tua honra. Estou a ouvir-te rir e a dizer que dispensavas mas também era o mínimo que a grande ceifeira poderia ter encomendado, não achas?
As coisas nunca são como nós gostaríamos que fossem e a vida parece quase uma roda, um círculo perfeito que acaba no sítio onde começou.
A vida juntou estes amigos, a vida separou-nos de ti.
Quem nos vai marcar e escolher restaurante, informar os melhores sítios, contar anedotas, falar dos netos e dos seus desenhos, sorrir-nos quando aparecemos?
Tu eras o maior no nosso grupo e não estou a falar só do mais alto, que também o eras, mas aquele de que cada um de nós não prescindia- pergunta ao Aníbal, o que é que o Aníbal acha, o que é que o Aníbal diz sobre isso?
Só mais um bocadinho, dizias. 'Mais que duas Igrejas é muito, só mais um bocadinho' e rias com esse teu sorriso primaveril que te caracterizava, o tal que vai ficar connosco.
Quem nos vai ler poesia com aquela voz sincera e clara como a tua?
Não sei, não sabemos desde quando é que te começaste a dar com a grande ceifeira, em segredo. Os tempos não estão para compromissos mas ela teve contigo um encontro rápido mas eficaz, logo tu um ser cintilante e colorido. Tu que amavas a vida, o brilho e a cor, que não gostavas de solilóquios, que tinhas tanto para alegar em tua defesa, mas ela envolta na poeira dos tempos e sem o menor grau de certeza veio falar-te ao ouvido. Confundiu-te amigo, é impossível que não te tenha confundido, anda transtornada e enganou-se.
Tu, nós, que gastamos breves instantes a passar pela infância, pela adolescência, pela juventude e pela vida adulta... a senhora morte congeminou mal, deve ser acusada de assassinato, praticou um crime. veio buscar uma pessoa apaixonada pela Vida. Confundiu-te amigo, só pode ter-te confundido. Veio irada, gelada, desvairada, quem ela se julga para se apresentar cheia de substância na tua frente e mais mortífera do que nunca.
Se te encontrares com ela por aí, fotografa-a, diz-lhe que é uma cobarde, uma assassina e grava-lhe os urros lancinantes da loucura, esses grunhos, havemos de fazer um álbum jocoso dessa rainha Gertrudes.
Diz a essa besta cobarde que te apanhou de costas que não gostamos de criaturas heteróclitas e que a consideras a mais feia de todas as damas, que tem uns chifres de tamanho do mundo e uma cabeça de peru e os cascos são enviesados, que se escusa de tapar e esconder toda que agora a conheces bem e que se ela te matou tu também a vais matar, mas de frente, porque até lhe conheceste as canelas peludas quando ela se afastava de ti ontem à tarde, que ainda lhe tiraste uma fotografia e vais mostrá-la a todo o mundo como repugnante ela é.
Só ontem à tarde percebeste o ictiocentauro que estava à tua frente, que se tinha escarranchado ao teu pescoço conforme me disseste no último dia que falamos, 21/2/2021.
Todos nós pensamos em Hamlet e pensávamos que a velhice era um sol poente, mas a tua tragédia foi exponencialmente geométrica.
Tu que anotavas tudo, que organizavas tudo como um arcano maior, como um mago que fala, actua, estuda e escreve, um diplomata com vontade e energia, a ceifeira mascarada de preto e com utensílios para a ceifa enganou-te muito. Agarrou-te e envolveu-te em silêncio primeiro, apanhou-te distraído
Amigo Aníbal, resta-nos o prazer de termos conhecido uma pessoa de bem, uma pessoa que deu conta do recado na vida e que deixa uma família bem formada e de sensibilidade alabastrina.
Não são todos que se podem gabar de conhecer gente que constrói famílias bonitas e que tem um séquito de amigos, nem todos nos podemos dar a esse luxo.
Tinhas tanta vontade de viver para os teus netos e filhas e mulher a quem tanto amavas e admiravas e cai sobre ti, de repente este violento acto da assassina cobarde.
Puff Aníbal, ainda mal nos caíram os dentes de leite e já estamos a ter de encarar esta infeliz que odeia os genuínos, os autênticos.
O Rogério chora, o David chora, o Teodoro como sabes gostava muito de ti e continua a ouvir-te como eu, como o Cristóvão, que partida que essa senhora lhe pregou também.
ATÉ SEMPRE AMIGO e olha que ouvi os teus conselhos, já estou a tomar os comprimidos todos e agora vou cumprir tudo à risca, só me falta ser menos chata e não levar a vida tão a sério como tu me dizias.
BEIJO QUERIDO AMIGO, FICARÁS SEMPRE CONNOSCO E DISSO NÃO TERÁS DÚVIDAS E VAIS CONTINUAR A RIR CONNOSCO, PROMETEMOS!