quinta-feira, 18 de março de 2021

A MORTE


 Esta senhora toda poderosa no seu grandioso silêncio veio buscar-me mais um amigo.

A morte é uma metáfora que atrasa, que transporta as nossas vidas.

Preparo-me para ir ao velório do meu amigo Aníbal (parece-me inacreditável) e como não sei orar muito bem, concentradamente, resolvi escrever a minha prece para ti.

Sinto-me como se fizesse parte dum coro que lamenta a sorte humana na tragédia. 

A  morte pesa muito.

Tu fizeste homeostasia toda a vida, cuidavas de regular bem a tua vida, e de repente veio ela e ceifou-te, NÃO LHE PERDOO.

Não sei amigo se na morte temos a possibilidade de continuar a olhar para os tectos pintados a fresco com figuras de anjos roliços de mãos dadas, tu mo dirás.

Hoje mais uma vez, são 10,13h neste momento, vais abrir a porta da Igreja com uma grande chave como fizeste da outra vez, só que hoje não precisas de limpar os pés no tapete,  retiraram-no ecolocaram uma passadeira vermelha em tua honra. Estou a ouvir-te rir e a dizer que dispensavas mas também era o mínimo que a grande ceifeira poderia ter encomendado, não achas?

As coisas nunca são como nós gostaríamos que fossem e a vida parece quase uma roda, um círculo perfeito que acaba no sítio onde começou.

A vida juntou estes amigos, a vida separou-nos de ti. 

Quem nos vai marcar e escolher restaurante, informar os melhores sítios, contar anedotas, falar dos netos e dos seus desenhos, sorrir-nos quando aparecemos?

Tu eras o maior no nosso grupo e não estou a falar só do mais alto, que também o eras, mas aquele de que cada um de nós não prescindia- pergunta ao Aníbal, o que é que o Aníbal acha, o que é que o Aníbal diz sobre isso?

Só mais um bocadinho, dizias. 'Mais que duas Igrejas é muito, só mais um bocadinho' e rias com esse teu sorriso primaveril que te caracterizava, o tal que vai ficar connosco. 

Quem nos vai ler poesia com aquela voz sincera e clara como a tua?

Não sei, não sabemos desde quando é que te começaste a dar com a grande ceifeira, em segredo. Os tempos não estão para compromissos mas ela teve contigo um encontro rápido mas eficaz, logo tu um ser cintilante e colorido. Tu que amavas a vida, o brilho e a cor, que não gostavas de solilóquios, que tinhas tanto para alegar em tua defesa, mas ela envolta na poeira dos tempos e sem o menor grau de certeza veio falar-te ao ouvido. Confundiu-te amigo, é impossível que não te tenha confundido, anda transtornada e enganou-se.

Tu, nós, que  gastamos breves instantes a passar pela infância, pela adolescência, pela juventude e pela vida adulta... a senhora morte congeminou mal, deve ser acusada de assassinato, praticou um crime. veio buscar uma pessoa apaixonada pela Vida. Confundiu-te amigo, só pode ter-te confundido. Veio irada, gelada, desvairada, quem ela se julga para se apresentar cheia de substância na tua frente e mais mortífera do que nunca.

Se te encontrares com ela por aí, fotografa-a, diz-lhe que é uma cobarde, uma assassina e grava-lhe os urros lancinantes da loucura, esses grunhos, havemos de fazer um álbum jocoso dessa rainha Gertrudes.

Diz a essa besta cobarde que te apanhou de costas que não gostamos de criaturas heteróclitas e que a consideras a mais feia de todas as damas, que tem uns chifres de tamanho do mundo e uma cabeça de peru e os cascos são enviesados, que se escusa de tapar e esconder toda que agora a conheces bem e que se ela te matou tu também a vais matar, mas de frente, porque até lhe conheceste as canelas peludas quando ela se afastava de ti ontem à tarde, que ainda lhe tiraste uma fotografia e vais mostrá-la a todo o mundo como repugnante ela é.

Só ontem à tarde percebeste o ictiocentauro que estava à tua frente, que se tinha escarranchado ao teu pescoço conforme me disseste no último dia que falamos, 21/2/2021.

Todos nós pensamos em Hamlet e pensávamos que a velhice era um sol poente, mas a tua tragédia foi exponencialmente geométrica.

Tu que anotavas tudo, que organizavas tudo como um arcano maior, como um mago que fala, actua, estuda e escreve, um diplomata com vontade e energia, a ceifeira mascarada de preto e com utensílios para a ceifa enganou-te muito. Agarrou-te e envolveu-te em silêncio primeiro, apanhou-te distraído

Amigo Aníbal, resta-nos o prazer de termos conhecido uma pessoa de bem, uma pessoa  que deu conta do recado na vida e que deixa uma família bem formada e de sensibilidade alabastrina.

Não são todos que se podem gabar de conhecer gente que constrói famílias  bonitas e que tem um séquito de amigos, nem todos nos podemos dar a esse luxo.

Tinhas tanta vontade de viver para os teus netos e filhas e mulher a quem tanto amavas e admiravas e cai sobre ti, de repente este violento acto da assassina cobarde.

Puff Aníbal, ainda mal nos caíram os dentes de leite e já estamos a ter de encarar esta infeliz que odeia os genuínos, os autênticos.

O Rogério chora, o David chora, o Teodoro como sabes gostava muito de ti e continua a ouvir-te como eu, como o Cristóvão, que partida que essa senhora lhe pregou também. 

ATÉ SEMPRE AMIGO  e olha que ouvi os teus conselhos, já estou a tomar os comprimidos todos e agora vou cumprir tudo à risca, só me falta ser menos chata e não levar a vida tão a sério como tu me dizias.

BEIJO QUERIDO AMIGO, FICARÁS SEMPRE CONNOSCO E DISSO NÃO TERÁS DÚVIDAS E VAIS CONTINUAR A RIR CONNOSCO, PROMETEMOS!


2 comentários:

Unknown disse...

Querida Helena!

A morte do Anibal fez-me chorar. A tua carta fez-me chorar.
E choro porquê?
Choro porque o Anibal era um amigo certo. Choro porque a tua carta caracteriza, de forma sentida, o que era o nosso amigo.

Bj.

David Cardoso

GL disse...

Tenho andado ausente, por motivos vârios que não vêm a propósito.

A propósito vem, isso sim, a "conversa" com o amigo que partiu, a dor, o espanto, a indignação pela ousadia -dessa "coisa" que nem consigo chamar pelo nomew - em levar o amigo, num despudor, num desrespeito intolerável.
Mas, Amiga, há pessoas que atingem a imortalidade e pelo testemunho que aqui deixa, ele pertence a este grupo de eleitos. Partiu sem partir, vive em cada um de vós que tanto o amavam, da família aos amigos, estará sempre na vossa memória, no vosso coração, estará neste testemunho da pessoa bonita que era, do Homem com letra bem grande que se tornou imortal.

Um grande, e amigo abraço solidário.