quarta-feira, 19 de maio de 2010

À MINHA AMIGA C



Nunca foi de humildade exagerada. Disfarça a falsa altivez com aquele belo sorriso sempre pronto.
Entrámos na Nave e logo me disse: já tinhas estado com um call-center quase em cima de ti? Sempre lúcida a todos os pormenores, embora se detenha nos insignificantes, porque lhe dá jeito, vai atribuindo papéis a quem cruza consigo: este ser insignificante, aquela mesquinha, horrível e aqueloutro malfeito, sem interesse, nem cabelo tem. Tens a certeza que compraste o bilhete para o filme que escolhemos, perguntou-me. Ri-me, ela sempre me surpreendeu com as suas análises e frases a titulá-las.
É capaz de imaginar todos os pontos de vista, até mesmo que está ali a representar um papel, mas é um excesso, uma insensatez o papel que lhe foi atribuído. Ao princípio rejeitou esse papel, rasgou-o, agora como grande executiva e boa profissional que é, diz que o vai representar porque os bons são aqueles que representam até a lista dos telefones com pose de estrela. Rio-me, mas tenho a certeza absoluta que a vamos aplaudir de pé.
Agora imagina um nome novo para o guião daquele filme,em que ela é uma da actrizes convidadas, isso ela vai mudar e pergunta-me "ISTO NÃO É ENGANO?", que achas do novo título?
A sua racionalidade acorda-a e ouve-se gritar "cuidado", pensa: que chatice, vai haver intermitências do sexo e do espírito.
Nunca pensou tanto em literatura como agora e pensava mesmo enquanto estávamos na fila para o café, que se queria soltar depressa do parêntesis em que a mantinha solenemente fechada e segredou-me, a mim que estava ali: sabes, há duas coisas que abomino, a submissão e a técnica. Arregalei os sentidos, a minha amiga estava a querer dizer-me que todos somos sobreviventes e que estávamos ali, as duas a fazer parte dessa sobrevivência.
Rimos a bandeiras despregadas, e toda a gente olhava, não sei, se calhar. Compensávamos a nossa ausência de conversas, com uma espécie de diário intimo.
Apetecia-nos algo e a nossa fome era cósmica à escala individual.
Bela, a minha amiga, na vanguarda sempre, saiu daquele lugar/palco e declarou: não posso perder a pose, não achas? Dá-me essa carteira, escolhi-a para este papel.
Achei-a fantástica, melhor do que nunca a minha amiga C.

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