quinta-feira, 19 de julho de 2012

NO HOSPITAL UMA MANHÃ

CONSULTA EXTERNA

Se algum sociólogo ou psicólogo social quiser fazer uma análise, uma espécie de corte transversal à sociedade vá até ao Hospital uma manhã, um dia inteiro, está lá tudo.
No Hospital, local de silêncio, tudo é ruído, a começar por quem lá trabalha e em toda a parte há uma fauna que se move, que se cruza, que se inspecciona. Há também um sentimento de vaidade ou de malogro.
As salas estão recheadas de pessoas, não só de doentes, mas também de acompanhantes, são como telas ou esculturas num museu ao vivo. Há mulheres-mães, mulheres-esposas, mulheres-filhas e companheiras.
Há homens que simulam mergulhar em meditação enquanto espiam as pernas (usam-se de novo, os vestidos) duma mulher que por ali passa, seja doente, médica ou qualquer outra.
Ouve-se gente falar de doença em descrições dolosas e pungentes, esperando que outras as ouçam, como que buscando consolo nesse palco.
Há sorrisos velhacos que espreitam tudo, às vezes tudo parece conspurcado e sem sentido.
Corredores cheios de gente, gente que circula em cadeira de rodas, de maca ou a pé, tudo no mesmo espaço para trás e para diante ou em diagonal mesmo.
Ontem, o suor corria na testa dos ocupantes daqueles salões. Muitos infelizes ali se encontram, a maioria traídos pela vida e agora por este Ministro da Saúde, da maneira mais leal possível.
É um lugar quase triste,onde se olha constantemente para um placard com uns números, se não fora de quando em vez, uma voz ou diabrura de criança ou o colorido duma mulher de pernas longas e morenas.
Há alguma gravidade no ambiente, nota-se através do tamborilar dos dedos de uma senhora ou homem mais impacientes.
E tudo eu invento, vidas para este e para aquele e mais aqueloutra.
Aquela ali com saia rodada comprida, de meia idade, aquela idade em que há aventureiras aposentadas que buscam ainda, aquele outro com  ar de quem esteve preso e que não demorará muito em lá voltar.
Há a avó que não segura a neta em férias, habituada a não ter avó nem família, nem nada. Há o filho atencioso com o pai velho.  Há a mãe dependente da cadeira de rodas e da filha.
Há uma criança a encabritar-se na cadeira e a voar num cavalo alado, há um aparelho de ar condicionado que faz chover e retrocedo 30 anos atrás.
Há também uma espécie de dourada miséria que lêem revistas de trás para a frente e de frente para a trás com o peito ao leu com blusas compradas nos chineses para chinesas magras ou nos ciganos que também compram nos chineses e que mesmo assim enumeram dívidas. Imagino-as em quartos escuros, com cobertas com nódoas e paredes sujas de humidade.
Mulheres carregadas de estrias como antigamente os ciganos com dentes de ouro, mais moídas que a própria vida.
Há discretas senhoras e senhores que usam a sua finura em qualquer lado, furando delicadamente todos estes ambientes e eu penso e sinto o canto das cigarras e as montanhas áridas que Cézanne pintou. Olho para os cartazes nas paredes que anunciam congressos e pergunto-me qual é o local que não quer ser inventado e que não merece isso?

1 comentário:

lua vagabunda disse...

engraçado, mas a minha memória dos Hospitais e das Consultas externas é bem diferente... Até era mesmo dos poucos sítios onde vi sempre o exercício da solidariedade e a indiferença por quem é quem e pelas diferenças sociais dos ocupantes dessas enormes e impessoais salas.
Por outro lado, havia sempre aquela curiosidade mórbida de se saber qual o padecimento da outra pessoa para nos sentirmos menos sós no sofrimento...