sábado, 27 de fevereiro de 2010

DO DIA QUE PASSA E ME LEVA





Fui à janela olhar o rio. Estava cheio das chuvas e possivelmente da abertura das barragens em Espanha. Nós e os espanhóis, sempre eles, pensei.
As águas do Douro têm estado castanhas, pardas, pesadas e quanto mais as olho mais sobressaltos tristes me fitam.
Que vou fazer hoje, pergunto-me.
Olho para o céu, plúmbeo, ameaçador. A lua já se tinha recolhido e o sol continuava aquartelado nos meus sonhos.
Estive dois dias a ouvir palavras, palavras que falam de mim. Os escritores(as) são pessoas iguais às outras. Vão à casa de banho, pintam os lábios, tomam café, querem saber quem são os leitores, como os leitores querem saber quem são os escritores, olham os abismos, comem e dormem, têm angústias muitas e incertezas várias e como por milagre, rodam para o outro lado, tornam-se para lá do palco.
Vi-me então à distância, de costas, na imaginação que tenho de mim.
Vi-me como se me olhasse naquela solidão que encontra a folha branca com a agitação da ideia, o encontro do dia com a vida.
E como tudo se funde no nosso ver, regressei a olhar o rio, esqueci-me do tempo, esqueci-me de mim.
Esqueci-me de todas as vozes que me gritam, de tudo o que tenho para esquecer, esqueci os gestos, esqueci a jornada e de novo regressei ao interior do meu quarto e logo todo o meu dia se perfilou à minha frente, olhamos um para o outro e ele ditou-me, como sempre deu-me ordens: "Vais fazer massa com carne, talvez seja bom para aumentar a energia e não engordar. Vais ter de passar a ferro, hoje é o dia da roupa e nisso gastas a tua manhã. Quanto à tarde, bem tu é que sabes, queres sair? Ir ao cinema? Não te esqueças que tens de falar, senão desabituas-te da palavra falada, da palavra exposta ao contraditório, da palavra que te puxa, que se move, que se apressa, corre até, te olha e te penetra. Tens de falar, partilhar o pensamento. Tens de a juntar a mim, não te esqueças! Não deves continuar só a falar contigo(podes pôr a vírgula no só, se quiseres, talvez seja mesmo isso).
Neste dia chuvoso, com vento suão, a olhar para o rio, reparei no arco-íris que se levantou do monte e veio cair aqui ao meio do leito e li, ao olhar para o céu que por momentos tinha clareado, li uma alma a mais, um corpo para juntar ao meu nos restantes dias.
Sabia que depois de ver o céu, ouvir poesia, pensar na rotina, convinha adiar o meu caminho para a clausura, para a existência tão espantosamente objectiva e precisa que me falava do abstracto, do geral como uma lei.
Entrou, por escassos momentos, um raio de sol. Iluminou-me de repente. Foi apenas um instante, desassosseguei. Queria perguntar a esse risco de luz, a esse raio de sol, por palavras que correm para o mar, imaginá-las noutros portos onde há descobertas e surpresas. Viajar, correr, dançar, amar, amar aqui,ali e a toda a gente como dizia a poetisa que tanto amei na adolescência, Florbela Espanca.
Sento-me na cadeira mais próxima, estonteada com tanta volta. A cabeça tinha rodízios. E se houvesse uma maneira de tudo ser e não ser ao mesmo tempo.
Não, não era uma boa ideia, se assim fosse onde ficaria a arte, a literatura?
E porque já o raio de luz se tinha ido, todo o pensado o vivido o experienciado naqueles minutos, se tinham fundido em mim, toda a proximidade e toda a distância.
A agitação tinha passado, mas permaneceu um brilhozinho nos olhos, reparo agora no espelho que se me dirigiu.
Vi-me. Vi o quarto e porque o sol já tinha regressado à sua condição de fantasma, regressei também eu à minha espantosa subjectividade existencial.
Deixei de olhar para olhar de novo.

NÃO QUERO RESPONDER PARA PERGUNTAR, NÃO QUERO NEGAR PARA AFIRMAR, NÃO QUERO MENTIR PARA DIZER A VERDADE, mas quero que os meus dias se tornem outra coisa.

Tudo à minha volta se tornou insuportável, a rádio, a televisão, os jornais, tudo se tornou um cansaço, tudo o que fala do mundo, tudo menos a VIDA da Vida.
O que faz um raio de sol?
O raio de sol que entrou de repente para mim e que de repente o vi...

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