sábado, 1 de março de 2014

CHAME-ME DOUTORA

Antigamente, muito antigamente, quando existiam mercados e eu os frequentava, as vendedeiras chamavam-me amor, "venha cá mor" e eu lá ia toda contente.
Achava piada a este tratamento que me treinava a resignação.
Hoje, ontem mais propriamente, uma enfermeira num hospital privado, propriedade dum banco como não podia deixar de ser, hospitais que deviam ser chamados de públicos já que nós é que damos  dinheiro aos bancos para os comprarem, mas dizia eu, a enfermeira que estava com as minhas veias  exigiu que lhe chamasse doutora.
A história é curta e conta-se bem.
Tentava a jovem enfermeira extrair-me sangue para análise e ao fim de três espetadelas sem dó nem piedade e eu lhe ter dito, a sorrir ainda, "menina tenha cuidado, está a magoar-me".
A jovem abespinhada, olhou para mim olhos nos olhos e como se  eu e as minhas  veias fossemos as únicas responsáveis de tal nervosismo e inabilidade, disse-me: " trate-me por doutora que é o que eu sou".
A rapariguita despertou em mim um sem número de pensamentos e sentimentos e muita, mas muita indignação e raiva por viver num país assim.
Lembrei-me de imediato das praxes, lembrei-me do país dos doutores, dos Relvas, dos Sócrates e de todos esses aromas penetrantes que me incomodam.
Lembrei-me que a jovem que queria que lhe chamassem doutora se calhar era a primeira na família a poder, não obstante  tanta estupidez, reivindicar o título e que se calhar só tinha tirado o cursozito a pensar no título e,  retirar sangue para análise não estaria mesmo nos seus planos.
Lembrei-me da carta que um colega seu tinha escrito ao Cavaco, lembrei-me da emigração e dos euros que ganham à hora e de que eu pago mais à minha empregada.
Lembrei-me de tudo, do Portugal pequenino. Lembrei-me das nozes e dos dentes e do deus que dá as nozes a quem não tem dentes e dentes a quem não tem nozes e  lembrei-me de mim, que até me dá arrepios quando me chamam doutora, pensando sempre que não sou eu e dos meus amigos, alguns catedráticos, a quem acontece o mesmo.
E penso na chalaça que é este país e na altura da inveja e os humildes de ornamento que quase pedem desculpa por existirem e que me irritam solenemente porque me fazem pensar que enquanto são assim pensam filosoficamente em 'comer' os outros e nesta filosofia da importância.
E lembrei-me claro, dos rouxinóis, que se escutam e que só cantam um de cada vez, que cantam perdidamente até ao paroxismo, embriagando-se no próprio canto, até tombarem mortos.

... e depois não pensei mais, apenas pedi à menina  que chamasse uma enfermeira para me tirar o sangue.

2 comentários:

GL disse...

Essas alminhas apenas me causam um sentimento: dó.
Ambicionam alcançar um patamar que à partida lhes parecia vedado, só que não sabem, por pura e genuina ignorância, que não é o simples "canudo" que faz esse milagre.
Pobres deles. Falta-lhes a verdadeira sabedoria da vida, falta-lhes humildade.
Beijo.

lenço de papel; cabide de simplicidades disse...

NÓS ÉRAMOS MUITO POBRES... E CONTINUAMOS A SER E É MUITO TRISTE