sexta-feira, 19 de dezembro de 2014

CORRUPÇÃO E DESIGUALDADES

Crise económica, crise social. Um Orçamento de Estado para 2015 que insiste na austeridade e no empobrecimento, uma dívida astronómica e impagável em democracia, desigualdades gritantes e crescentes, um desenvolvimento adiado, a multiplicação de casos de corrupção. Só quem não compreende o quanto as sociedades são ecossistemas se espantará com a coincidência, e interligação, de todas as vertentes do colapso que estamos a viver.
O ano de 2014 vai terminar marcado por múltiplos casos do foro judicial, que farão transitar para os anos seguintes complexos processos de investigação, julgamentos e sentenças que envolvem figuras e instituições ligadas ao poder económico, financeiro e político. Os chamados «caso GES/BES», «caso dos vistos Gold» ou «caso José Sócrates», juntando-se a outros que se sucederam num passado recente, envolvem, entre outras, suspeitas ou acusações de práticas criminosas, de gestão danosa, de fraude fiscal, de branqueamento de capitais e de corrupção.
Seja qual for o desfecho dos processos, apurem eles matéria susceptível de condenações ou ilibações, anunciam-se procedimentos complexos, mais morosos do que seria desejável e com imbricamentos que tenderão a extravasar o campo estritamente judicial, como é o caso do campo mediático. Com a ajuda deste, e com alguns órgãos de comunicação social useiros e vezeiros na substituição da investigação jornalística por fugas ao segredo de justiça, assim degradando o jornalismo e corroendo a justiça, instalou-se um clima de «directos» que nada acrescentam senão ansiedade e comoção, e que disfarçam mal a (contudo compreensível) ausência de informação.
Juntemos à pressão do imediatismo ansiogénico as fortes emoções antagónicas suscitadas quer pelo combate político quer pela competição nos negócios, tudo isto numa situação de quatro anos de profunda crise económica e social e de percepção pública do quanto ela deve à corrupção e ao poder dos grupos económicos na acção política, e será fácil compreender como depressa se cavaram trincheiras onde se acantonaram posições fechadas, e como tantas opiniões e convicções se transmutaram em certezas inamovíveis, por vezes com laivos justicialistas.
A questão que agora se coloca, mesmo tendo em mente que, em rigor, a política e a justiça têm áreas de absoluta separação mas também áreas de cruzamento (a qualidade do funcionamento da justiça depende muito das políticas adoptadas para a justiça), é a de pensar qual a melhor forma de contribuirmos, como cidadãos, para que se obtenha a melhor justiça. O primeiro princípio de que não se pode abdicar, porque ele existe para defender todos, sem exclusão, é sem dúvida o da presunção de inocência. Em seguida, quer estejamos animados por expectativas mais optimistas ou menos optimistas quanto à qualidade actual da justiça em Portugal, temos de a deixar actuar, sem deixar de prestar atenção ao que ela nos mostrar que terá de ser melhorado (o excesso de prisão preventiva parece evidente). Tal como temos de deixar o bom jornalismo ir fazendo o seu trabalho e contribuir para a nossa informação, afastando-nos do que só produz ruído e lixo (e deve ser sancionado).
Isto implica trocar as trincheiras do justicialismo e das adesões (ou repulsas) emocionais pela trincheira da justiça. Implica fazer a escolha de suspender o juízo – esse conceito grego de epoché de que falava Descartes –, não como uma desistência de compreender ou até de ajuizar, mas como uma consciência de que essas mesmas acções remetem para a acção (exigem-na) de outros actores e para metodologias e apuramentos de que não somos, neste momento, conhecedores. A escolha da suspensão do juízo em relação a casos e figuras concretas permite também abrir o espaço de que tanto precisamos para passar do centramento nas práticas e comportamentos individuais, que são do foro judicial, para uma reflexão cidadã sobre as estruturas e arranjos institucionais a que as escolhas políticas nos têm conduzido.
Na trincheira da justiça, os combates exigem um sistema judicial que a garanta para todos, mas exigem também justiça social e económica. Não pressupõem um combate entre o Bem e o Mal, com os respectivos heróis e vilões, antes convidam a reflectir sobre as escolhas que fazemos e que são mais capazes de criar uma configuração institucional da sociedade (justiça, saúde, educação, segurança social, transportes, etc.) geradora de mais democracia, mais igualdade, mais justiça social. Sabemos, em particular desde os trabalhos de Richard Wilkinson e Kate Pickett [1], que «as sociedades igualitárias funcionam quase sempre melhor» e que existe, entre outras aspectos, uma correlação entre as que são mais desiguais e as que são mais afectadas pela corrupção.
Sendo a sociedade portuguesa, já antes da crise iniciada em 2008, uma das mais desiguais, não é de espantar que seja tão atingida pelo fenómeno da corrupção. Os cidadãos têm consciência disso. Já em 2012, num estudo revelado em Julho de 2013, 78% dos portugueses inquiridos considerava que a corrupção estava a aumentar nos dois últimos anos e 53% pensava que o governo «está nas mãos de um conjunto restrito de grupos económicos», temendo que «as decisões políticas sejam tomadas sem independência, favorecendo esses mesmos grandes interesses económicos» [2]. O que mostrarão os próximos inquéritos? Dificilmente a percepção será mais positiva, pois toda a realidade se deteriorou entretanto.
Os anos da austeridade e do empobrecimento causado pelas políticas neoliberais, pela alegre subserviência dos governantes aos constrangimentos institucionais e monetários europeus, vão tornando o país ainda mais desigual em termos socioeconómicos (e territoriais, também). A corrosão acentuada da segurança no emprego, o aumento da pobreza laboral e a eternização das situações de desemprego e precariedade favorecem um ambiente de medo e de angústia, mas também de diluição das regras, da deontologia, da cooperação. A captura do Estado pelo poder económico-financeiro multiplica engenharias de concessões e privatizações que corrompem as missões do Estado (que deviam ser a orientação para o bem comum, e não para os interesses privativos nem privados). Ao mesmo tempo, essa captura instaura procedimentos que fragilizam a ética de serviço público, as instituições públicas, os vínculos cooperativos e solidários, os valores não-mercantis (a dignidade, a integridade, a honra, etc.).
Este país em que os recursos são transferidos do público para o privado e em que os rendimentos são canalizados do trabalho para o capital, dos cada vez mais pobres para os cada vez mais ricos, «só» é de crise para a grande maioria. Para os outros, é um campo imenso de oportunidades de negócios, mais ou menos lícitos mas plenos de promessas de lucro. Quando os enquadramentos legais e institucionais são frágeis, ainda por cima num ambiente social em que a acção colectiva de contra-poderes cidadãos (sindicais, associativos, etc.) é insuficiente, os ambientes altamente competitivos e a promessa de lucros frágeis, no contexto atrás descrito, promovem todo o tipo de práticas lesivas do interesse público, corrosivas do bem comum. Mesmo sabendo que parte das dificuldades da acção colectiva também resulta da própria situação de crise – que leva os que mais precisam da mudança a dedicar todo o seu tempo à sua própria sobrevivência diária –, não podemos deixar de investir as forças que temos na organização do combate feroz a este sistema criado para gerar mais desigualdades, mais corrupção, mais vidas perdidas. O nome desse sistema é neoliberalismo e, por agora, os presos nas malhas da desigualdade somos nós.

sexta-feira 5 de Dezembro de 2014 - SANDRA MONTEIRO EM LE MONDE DIPLOMATIQUE

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