terça-feira, 16 de dezembro de 2014

de AMADEU BAPTISTA

VIAGEM NOCTURNA


estrangeiro em lisboa, venho aqui para descobrir
bach nas avenidas novas e algumas mulheres sentadas
nas escadinhas do duque. esta é uma cidade odiosa, de tão branca
que é – e suja, sempre a lembrar-me do que devo esquecer
neste rio sem naus, mas cafres insuperáveis. o certo
é que durmo na travessa dos fiéis de deus com frio e agastado pelos ruídos
da praça, enquanto tu, camões, pareces impassível à arruaça
e na tua sereníssima imanência nem dás pela promiscuidade citadina.
odeio, abomino esta gente que não me olha nos olhos, e tem, abertamente, um linguajar
de réptil, sem matriz, catedral, solenidade: anda na rua como se fosse cega
e acresce ao desvario um esbulho de luz incoincidente com a minha intratável entoação nortenha, que, talvez, ao antónio barahona não destoe, já que pede por nós em grego,
e aramaico, e árabe, sem que, apesar disso, muito se compraza. lisboa a estas horas
nem sabe o que é a chuva, a água, o tejo – ocupada nas compras
e sem novas de ulisses, ou das barcas, vibra de cheiros maus pelas vielas,
que o fado, de alguidar e faca, mais arrevesa do que sabe aproveitar.
como viver aqui me é desconcerto e acirra a vontade de morrer: vejo este pessoa
de bronze à porta dos cafés, a ser contaminado por uma freguesia tão absoluta
e primitiva que lembra o estado novo que vomito, vomito como um corvo.
se por este caudal viesse, ao menos, o cesário, talvez transfigurasse a aversão
em poema e o sarcasmo alinhasse na rua do trombeta algum montante de ternura avulsa. mas não. eu até em telheiras não estou bem, esse lugar de múltiplos desgostos, onde perdi, além do amor, um cão, um cão quase redentor. ah, lisboa: hoje, às três e meia, vai pelo mundo uma promessa de orgasmos pela paz universal, mas de ti nada se espera,
alheada que estás das coisas transcendentes, com a cauda entre as pernas e o olhar
sem vislumbrar o horizonte, onde uma virgem seminua de novo dançaria para ti,
se merecesses, ou a chulice encartada não prevalecesse. tivesses tu coragem
e ias a s. bento queimar o molho aos torvos que, para seu governo, nos andam a tramar, ou viravas 
a mesa, ou partias a louça, desterro nosso sem qualquer desterro.
serias, por uma vez, implacável, a fazer corpo com o futuro, em nome do que vale,
sem misérias ocultas e esperança justa. mas não. tu só te agastas pelo que é inútil,
com poesia melíflua do quotidiano e centros comerciais a liquidar enigmas estúpidos. olha as pontes, lisboa. olha, lisboa, os teus subúrbios. há mais beleza na pedreira
dos húngaros, ou nas arribas de cacilhas, que tudo em volta do castelo, salvando-se, talvez, pelo sortilégio, são domingos e as paredes calcinadas pelos incêndios
perseverantes, e onde eu, às vezes, vou, não para falar com deus, que não existe,
mas para apreender um pouco mais de bach, na parte que lá mora,
e ver, ao alcance da mão, outras mulheres sentadas, sempre à espera de um algum milagre avulso, algum ligeiro terramoto que as estremeça. é pena que o bocage, lisboa,
cá não esteja: cansado da bicheza, por certo encorajava diogo alves a regressar
do enforcamento para dar continuidade às obras de limpeza a que deu início
com a quadrilha, ali para o aqueduto, para acabar de vez com a cidade branca, deserta,
a matar os távoras que pode, ou quem resiste à ignomínia de estar à mercê de gente medíocre. pergunto pelo almada e venho vê-lo a alcântara, ao cais de embarque,
à margem de belém e os seus pastéis, de nata e presidência: apaziguam-me mais
estes painéis, de alvoroçada partida e descoberta, que uma ida à gulbenkian,
ou ao príncipe real, se bem que nos seus jardins a noite se suspenda
e um sortilégio vele, entre os ligustros, a noite imensa.
mas o almada não era de lisboa, tal como não era o botto,
(ou o herberto, a natália: gente de ilha/ gente de quilha, digo eu,
que também fui concebido numa ilha do porto, e se quisesse não, ah, não
enlouquecia), tal como não são de lisboa os habitantes de lisboa,
ou nós, artistas desta hora, que, não sendo de alguma parte, vamos da graça a alfama
com o coração apertado, num vinte e oito que nunca tem destino.
ah, que desgraça não sermos de saturno, que desgraça a nossa transcendência não ir além da gare do oriente e ter de estar sujeita a um restelo de velhos e furores adolescentes, sem génio nem remoque, mas sempre, e só, tormenta.
é que de adolescentes nem é bom falar: à luz do lampião, eu vejo-os pelos bares a cair
de bêbados, sem mãe que lhes acuda, ou tirocínio, que o mais que sabem
é exctasy e shoots, assim, em inglês, já que ler e escrever na língua de que são
lhes passa a milhas, no caso americanas: as jeans puídas e os cabelos soltos,
que não vêem sabão vai para semanas, a beneficiar, sem que o suspeitem,
o neo-liberalismo, são o sem sentido de uma rebelião
sem turbulência, manada para abate um dia destes. e quanto a velhos,
estamos conversados: a vetustez de oitocentos anos, nem para os sapatos mija,
ou desfeiteia viúvas, de pátria ou sordidez. ah, lisboa, nem o putedo infrene
dos teus becos é valia que baste. eu, que não sou cliente, atrevo-me a dizer
que não há puta mais repugnante que a puta de lisboa, sendo lisboa
a puta desgrenhada que se vê, que nem um bom mergulho purgaria
ou, ainda que por empréstimo, poria algum feitiço langue, ou dengue, ou o que fosse. mulher sentada que valha em lisboa é, tal como eu, estranha a estas paragens:
falo de uma eslava que conheço, que é bela como a planície alentejana, assim como são belas as cabo-verdianas que se sentam na relva para que o esplendor coaja – coaja
e ponha em marcha –  a indizível matéria do desejo. um poeta cai no seu campo electromagnético e é como se entrasse no mar ou no regaço de um sonho onde a canela, a mandrágora e o rábano picante se reunissem para um manjar de deuses, irrecusável. detestável lisboa, que posso mais dizer para contrariar-te, mesmo a pagar imposto,
com e sem valor acrescentado, além da derrama? desde que o fialho de almeida
se foi que os teus gatos, lisboa, são ramelas andantes, a comer do próprio vomitado,
sem miados à lua e cenas langorosas nos telhados, a incentivar amantes. há, é claro,
as coisas do botelho, onde tu, lisboa, talvez não por acaso, apareces vazia no retrato,
sem notícia do ajuste de contas necessário com os cobradores de impostos, as raparigas de cabeça oca, os rapazinhos lúbricos dos ginásios que se enfeitam para os rapazinhos lúbricos dos ginásios, as matronas do chá, que enfermiços canídeos arrastam pela trela,
os homens de negócios, cinzentos, como sempre, a traficar crianças e assassínios,
e os cônsules, os tribunos, os pretores, e até os sem-abrigo, que dormem
nos portais e perderam, entre tudo o que há para perder, a clareira após o abandono.
há, é claro, esse secreto adeus do baptista-bastos, a enredar real na realidade
e a viajar por uma deriva ignóbil, nas ruas da amargura, a fazer do obsceno obra acabada, como só pode ser o que é do homem. há, é claro, o gomes leal, o o’neill,
ou o cardoso pires, com anjos escarlates a tremeluzir nos céus, por pura limpidez
de sensualidade e ancoragem terna. mas tu, lisboa, não podes entender a aristocracia
que há no povo, não podes crer no poder da arraia-miúda proto-contemporânea,
nem mereces o vítor silva tavares, a congraçar a emenda e o soneto, sem mais tristeza possível  que a dos barcos que passam ao largo do cais das colunas,
enquanto o café gelo não tem outro destino do que deixar de ser a sede radical
da carbonária para se transformar em nova decadência de lambris escuros,
sem mário cesariny e sem luís pacheco, sem vergílio martinho ou ernesto sampaio,
sem antónio josé forte ou manuel de castro. melhor fora, lisboa, que fosses moura, ainda, e que às trindades se não ouvissem sinos, mas o sumptuoso grito do almuadem. ouvindo o chamamento, sabendo que a cotovia convocava à oração, ias, por fim,
lavar-te. e, assim, lisboa, talvez fosses o brilho verdadeiro de que brilhas


ao sol, como uma ave –  muita branca por fora, muito negra, por dentro.

© do poema Amadeu Baptista

Sem comentários: