terça-feira, 30 de dezembro de 2014

GOMES LEAL

Colhendo todos os ventos da poesia portuguesa na Geração de 70 e, pelas suas deficiências como pelos seus dons e até pela extensão da sua carreira, abrindo passagem para a fase simbolista e pós-simbolista, Gomes Leal é a personalidade adequada para se assinalarem, no remate de uma época, as tendências que já vinham minando e preparando a seguinte.

António Duarte Gomes Leal (n. Lisboa, 1848-06-06 - f. 1921-01-30), filho ilegítimo de um funcionário, viveu quase toda a sua vida da gazetilha e outras formas de trabalho jornalístico, da edição dos livros e sobretudo panfletos, dos rendimentos de que a mãe dispunha por morte do pai, e, finalmente, da caridade alheia, reforçada por uma pensão da República. Chegou a estudar no Curso Superior de Letras, mas a sua cultura literária foi sobretudo feita de outiva, nas redacções e cafés, e em leituras dispersas. A superficialidade fátua das suas elucubrações, a ingenuidade com que sempre misturou, sem fundir numa síntese, a máxima disparidade de influências e frases feitas denunciam-se nas suas constantes ambiguidades concepcionais, na débil construção dos seus pretensos poemas cíclicos, mas não nos devem iludir (como quase sempre tem acontecido) acerca da sua consciência de artista do verso e até de poemetos inteiros. Salvo quando o improviso se lhe impõe, ou quando pretende ter largas vistas sobre os destinos humanos, sobre a ciência, a filosofia ou a política, Gomes Leal é o mais hábil dos nossos poetas do seu tempo: é uma consciência fragmentária, mas lúcida nos seus fragmentos poéticos, se assim nos podemos exprimir. Todas as suas múltiplas virtualidades estão à vista nas Claridades do Sul, publicadas em 1875; mas, desde 1873 até pouco depois do Ultimato, a sua carreira literária liga-se com uma vida pródiga e dispersa de agitação política, em associações, comícios e jornais, onde a cada passo se denuncia a demagogia do seu pessoalismo, a inconsciência da sua vaidade literária. Além da colaboração nos jornais, publica uma série de poemas panfletários ou satíricos que, por entre a retórica dos seus defeitos, assinalam hoje, por vezes com garra emocional e justeza de traço, todo um rol de efemérides: a revolução republicana espanhola e os movimentos operários seus contemporâneos (O Tributo de Sangue e A Canalha, 1873); a celebração republicana de Camões (A Fome de Camões, 1880); a questão de Lourenço Marques, a agitação consequente e a passagem de Rodrigues de Sampaio à reacção (A Traição e O Renegado, 1881); o Ultimato (Troça à Inglaterra, 1890); etc.. A edição do Anticristo, em 1886, pretende culminar essa obra combativa com um poema naturalista que, superando, pretensamente, o Fausto de Goethe, teria digerido toda a ciência e toda a filosofia do tempo.
Mas Gomes Leal, que três anos antes, com a História de Jesus, se revelara saudoso das crenças ingénuas da infância, fere já a nota do seu pessimismo quanto a qualquer possibilidade de progresso humano, dá da evolução histórica uma visão de apocalipse. Em Fim do Mundo (1900) incorpora várias das sátiras anteriores, pretendendo fazer o processo da corrupção da civilização que estaria a findar com o século, visivelmente sugestionado pelo tom acerbo dos Mensonges Conventionnels (1883, trad. franc.) de Max Nordau e pelos filósofos pessimistas então em moda; num posfácio, Autópsia Final, só vê remédio para tantos males na educação do sentimento, "verdadeiro nome de Deus". Este é ainda, fundamentalmente, o ideário do Anticristo refundido em 1907 e acrescentado de Teses Selvagens ("o homem é progressivamente mau"; "a ciência fortifica a maldade humana"; "o homem será sempre o lobo do homem"; etc.). Entretanto, A Mulher de Luto (1902), um poema do Além, revela-o como aderente das ciências ocultas. Com a sua conversão ao catolicismo, em 1910, coincide o lirismo mariânico de A Senhora da Melancolia . Os últimos tempos de Gomes Leal lembram muito os de Verlaine pelo contraponto que neles se verifica entre a sua religiosidade fervorosa de então e uma impressionante degradação moral e física pelo alcoolismo.

Uma considerável parte da obra lírica de Gomes Leal está marcada pela busca de efeitos de surpresa, exotismos ou simples humorismo gazetilheiro na imprensa periódica onde colaborava; é o que acontece com as secções A Carteira de um Fantasista e Misticismo nas Claridades do Sul, e com Mefistófeles em Lisboa (1907). Podem classificar-se nesta categoria muitas das suas composições de colorido satânico ou mefistofélico, em que a lição de Baudelaire ou de Goethe nos surge reduzida a simples contrafacção para assarapantar o leitor. Acrescentemos-lhe ainda numerosos sonetos em que o lirismo se ridiculariza a si próprio numa grosseria, à maneira de João Penha, e obras versejadas que não passam de uma corrida discursiva para chegar até um conceito final estranho, ou que se dá ares de paradoxal ou perverso.
Quanto aos seus panfletos e sátiras, já notámos que as suas limitações são as do muito que contêm de demagogia egotista - o que resulta, afinal, da mesma necessidade, aqui ainda mais evidente, de dar nas vistas, de interessar um público sem grande experiência de ordem estética ou ideológica, vagamente iconoclasta, anti-romântico, antimonárquico, anticlerical, antiplutocrático, mas sem aspirações definidas a um teor de vida ou a uma ordem social diferente. Os poemas cíclicos de Gomes Leal falham inteiramente como tais, quer se trate das duas versões quase opostas do Anticristo (naturalista a de 1886, místico-sentimental a de 1907), quer do niilista Fim de um Mundo, ou da ocultista Mulher de Luto (1902).
No entanto, a obra de Gomes Leal obedece, no conjunto, a impulsos mais autênticos, que lhe dão uma fundamental unidade orgânica e se denunciam constantemente na sua estilística. Vários desses impulsos já se haviam verificado em poetas como Gérard de Nerval e Baudelaire, que chegaram até Gomes Leal, através, sobretudo, das Prosas Bárbaras de Eça, de que o nosso poeta é o legítimo herdeiro (ou co-herdeiro).

Como os outros contemporâneos, ele sofreu do profundo abalo das crenças da infância, em sintonia com a crítica bíblica e o darwinismo; e o fundo psicológico da sua obra acusa nitidamente o conflito que se trava entre o apelo afectivo da concepção transcendentalista cristã, constantemente sustentado pela influência da mãe e por um conjunto de rotinas quotidianas - e, por outro lado, uma aspiração indefinida de progresso histórico e de sobrevivência pessoal, que é, ao tempo, contraditada por sentimentos opostos de decadência histórica, de fim do mundo, e por uma obsessão materialista mecanicista da realidade. A natureza aparece-lhe como uma vasta necrópole de vidas findas, de pessoas, e até de deuses desacreditados: "a morte sai da vida - a vida, que é um sonho!". Mas da constante conversão recíproca entre a morte e a vida, o que mais impressiona a poesia de Gomes Leal é a morte, a dissolução de vidas, pessoas, religiões. No fundo, interessa-o, especulativa e afectivamente, não o que será, mas o que foi : de que modo poderá subsistir o que morreu (como subsistirá o próprio corpo, o da mulher amada, o das flores, etc.?). Uma vez que os deuses têm todos morrido, Gomes Leal pergunta: "Qual será o deus novo de amanhã?". A Natureza, aliás divinizada em Pan, ou identificada com Satã, ora lhe parece condenada à destruição, visível na Lua Morta, ora secretamente animada, cheia de estranhas correspondências que só ele, poeta, pressente, no seu sentido de fraternidade universal que, franciscanamente, se estende à podridão, às coisas grotescas e miseráveis. A riqueza metafórica de Gomes Leal, certa exploração certeira de sinestesias da alucinação nevrótica são o selo autenticador destes sentimentos. O seu erotismo transfunde-se das mulheres para as coisas. Sob a luz do sol meridional, ele julga perceber, agudamente, como as mais diversas sensações ecoam umas às outras: "Nas lânguidas noutes estreladas/como espectros de espinhos e rosas,/erguem-se em nós as cousas apagadas"; há noites em "que a tristeza tem formas monstruosas/como, num sonho, os pórticos claustrais". E frui "as gostosas torturas do mistério". Em numerosos passos, a sua poesia documenta uma agudeza sensorial que exige o ineditismo da imagem e da comparação, como pode sobretudo exemplificar-se com a conhecida Nevrose Nocturna das Claridades ("fria como o luar/sobre o dorso luzente e excepcional de um peixe", por exemplo). É claro que este ineditismo deriva também, nalguns passos frustes, do mero rebusque de excentricidade, de imitações baudelairianas e outras, e de ingredientes fixos, como, por exemplo, o do exotismo dos nomes bíblicos. Mas algumas das suas inesperadas combinações não deixam de fazer pensar em tendências muito posteriores de poesia experimental .
Gomes Leal apresenta-nos, assim, a mais requintada estética do verso seu contemporâneo em português. Há nele, aliás, amostras de tudo quanto os outros poetas portugueses do seu tempo variadamente tentaram; há ritmos fraseológicos já batidos, e há-os surpreendentes: narrações, descrições, enumerações, desdobramentos analógicos banais, mas também a expressão inexcedivelmente exacta dos mais variados tons de sensibilidade, que exige fartos elementos de uma escrita poética completamente nova no idioma. A contradição mais importante da sua poesia consiste em que nos sugere, sim, uma desconhecida animação do mundo objectivo e subjectivo, a riqueza de correspondências materiais e psíquicas, mas através de uma estilística e, em parte, através de uma linha de evolução ideológica que estão carregadas de sugestões, precisamente opostas, de catástrofe universal apocalíptica, de degenerescência civilizacional, de submissão pessoal a forças ou ditames ocultos que, pretensamente, acabariam por dominar os homens. O mundo, tal como Gomes Leal o sente, parece radicalmente inumano por duas razões opostas mas concorrentes nisso: o seu alheamento fatal a qualquer animação, incluindo a animação do espírito humano (materialismo mecanicista, inspirado por certa divulgação da ciência, por certo darwinismo, pela crítica bíblica de Renan, etc.); e a sua animação devida a uma vontade transcendente, a que só cumpre resignarmo-nos (concepção teológica ou ocultista). Quer dizer que o drama íntimo de Gomes Leal é, no fundo, o de Antero e o da ideologia dominante do tempo, mas expresso por uma forma menos conceptual, e mais poética; é o drama do empate entre o mecanicismo e o transcendentalismo.


In História da Literatura Portuguesa (DVD),
2002 Porto Editora

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