terça-feira, 6 de março de 2012

VISTE O COMETA?

Vem merendar mano.
A avó está a perguntar se queres pão com marmelada ou torradas com manteiga.
Sete/oito anos, era dia de Inverno.
E os castanheiros assavam castanhas.
O fumo confundia-se com o nevoeiro
E nós pedíamos dinheiro ao avô e à avó
Para irmos comprar castanhas, uma dúzia
Eu gostava das abafadas que os homens
Traziam penduradas em cestos às costas com correias de couro
E abafadas por um pano.
No quintal enorme duma casa portuense com certeza
O pai tinha mandado fazer uma gaiola muito grande para pássaros.
E havia um sabugueiro.
E o meu irmão ia aos ramos para tirar  miolo para as fisgas.
Queria matar pardais.
Eu assá-los-ia, estava combinado.
E para beber, dizia ele. Vou fazer licor, respondia eu.
Licor de cascas de maçã,  de cenoura ou de ananás.
Claro que licor era juntar açúcar às cascas e aguardar um dia.
Quando as costureiras lá de casa acabavam os bibes novos,
Nós distinguíamo-nos por um ser azul, outro cor-de-rosa.
A Srª. Glória, a criada  interna (naquela altura era assim que se dizia)
Quando encerava o chão, eu snifava o soalho , feliz da vida.
Sempre gostei do cheiro a cera e a torradas (aromas perfumados da infância).
E ouvia-se a chuva a correr sobre as pedras e o borbulhar nas caleiras.
E usava tranças com lacinhos
E sapatos de verniz preto com socquettes.
E as mulheres cantavam enquanto faziam limpezas
Ouvia eu nas traseiras da casa e do quintal.
E os panos de renda por cima do terno de sofás.
E o gira-discos a tocar músicas italianas e francesas.
E os colchões de folhelho lavavam-se uma vez por ano
Enchiam-se e voltavam a cozer-se.
E os guardanapos enfiavam-se na argola.
E o candeeiro de petróleo para quando faltasse a luz
Estava na despensa em sítio que toda a gente soubesse.
As idas à modista à Rua de Stª Catarina
Depois da escolha aturada da fazenda
Ou a procura insana nos figurinos, de tecidos e feitios
E havia a Burda, figurino dos figurinos.
A costureira de casa era para as coisas ligeiras
E as vestimentas para sair eram feitas na modista
Que chamava Madame à minha mãe e avó.
A praia durante dois meses sempre a mesma
E com os mesmos vizinhos de barraca.
As pastas de celeiro para início de aulas.
As roupas dos homens muito escuras, cinzentos e castanhos
E muito depois azul.
O meu pai ia ao alfaiate Capitólio junto à C.M.P.
E vestia cores muito mais claras
E eu achava-o lindo, lindo mesmo
As senhoras com os seus vestidos cortados na cinta
E de roda ou de godés.
A minha mãe que me parecia sempre uma artista de cinema
A quem o meu pai, de vez em quando, chamava Grace Kelly.
As idas à mercearia para aprender a fazer um recado
E a manusear o dinheiro e os trocos, dizia-se lá por casa.
Nas ruas havia muita gente, eu achava.
Nunca fui ao talho, mas quando por eles passava
Reparava que o chão estava coberto de serrim
Depois de ser lavado.
E perguntava ao meu irmão se tinha visto o cometa
Julgava que havia todos os anos cometa para ser observado.

   e mais tarde

Os rolos no cabelo durante a noite para ir bonita para o liceu.
A escrita para os afilhados de guerra.
As cartas para os correspondentes franceses e ingleses.
E... E... E...




1 comentário:

Helena disse...

Reconheço bem essa infância!
Daí, quem sabe, nos chegam algumas das afinidades que temos descoberto entre nós.

Interessante é verificar que já não me revejo nas pinceladas breves com que te referes ao "mais tarde"
Nem n'Os rolos no cabelo durante a noite, nem n'A escrita para os afilhados de guerra, nem n'As cartas para os correspondentes franceses e ingleses.

(Às vezes parece-me que a seguir à infância hibernei até aos 18 anos...)