quarta-feira, 15 de janeiro de 2014

A MANHÃ ESPANTA-ME O DIA

Não me apetece falar da política. A política actual é uma tragédia, ergue-se sobre o lixo e parte do lixo numa bizarra e cruel harmonia.
Não me apetece falar do tempo, que vai mau a fingir-se indiferente.
Não me apetece falar dos que têm sempre muita pressa e o tempo não lhes chega para nada, nem dos que ambicionam desmedidamente, dos confusos e caóticos.
Se fosse tocada pelos deuses calava-me e a luz transpirava de transparente.
Não me apetece falar dos que têm medo de se cansarem e de todas as personagens insólitas com que tropeçamos nesta vida.
Não me apetece pensar na mosca e no mar que ainda dorme ao longe.
Então de que respira o corpo para falar hoje?
Toda a gente fala na Europa mas não vivemos na Europa. Vivemos na órbita da lua. Onde é que isso fica?
Fica nos bairros sociais do Porto, nas ruas cheias de mendigos, na periferia da Brandoa, no continente metafísico.
Fica no português embófia, naquele "importante", naquele que fala segundo a categoria funcional do interlocutor.
Não quero falar de caras fechadas à chave.
Então do que quero falar? Do Sol.
Do Sol habitável, da ignorância limpa, de dias limpos de vésperas.
É difícil falar sem ser com um sorriso miúdo nesta algazarra difusa. As palavras não se ouvem, parecem que correm, não reinam, guerreiam. Levam-me pelas rédeas. Não sei se desejam mostrar a sua própria competência e confundir-me a ignorância.
Quando eu era pequenina, a minha avó fazia-me sopa de letras porque ingurgitava-as melhor, diziam a rir.
Se calhar comi letras a mais, mas diziam que a sopinha era para comer.
Nunca me deram sopa de ângulos, uma grande falha. Se tivesse comido sopa de ângulos, agora talvez encontrasse o ângulo justo para ver as coisas.
Falar da verdade e com verdade é quase como quando estou  a adormecer e me encontro naquele território de fronteiras em que ainda sabemos quem somos ou julgamos saber, mas em que já não conseguimos abrir os olhos e sonhamos e experimentamos sentimentos e sinto tudo o que quero sentir ...e cumprimos Portugal e a nós próprios num distante arrabalde de uma infância feliz.

3 comentários:

Helena disse...

Grande texto, Homónima!
Nenhuma letra a acrescentar ou a tirar.

Beijo

lenço de papel; cabide de simplicidades disse...

Se tu soubesses as adversidades, imagina que agora não entro no facebook, não é que perca muito, mas primeiro não conseguia colocar fotos aqui, agora não entro lá, decididamente não fui feira para isto. Obrigada, amiga. um beijo

GL disse...

Que nunca nos faltem as letras para lembrar todos aqueles que vivem na órbita da lua.
Boa noite.