terça-feira, 21 de janeiro de 2014

MEMÓRIAS HUMORÍSTICAS

Como eu gostava das senhoras que vendiam tupperwares, sempre muito arranjadinhas e sorridentes, pareciam-se mais ou menos com os angariadores de seguros.
Como eu gostava das senhoras que proclamavam alto e bom som que os seus maridos até em cuecas tinham chique e apregoavam aos sete ventos que os  maridos e filhos eram as melhores criaturas que alguma vez conheceram em suas vidas.
Como eu gostava dos cavalheiros que fingiam em rostos concentrados que cumpriam todos os seus papéis sem se ausentarem por um instante.
Como eu gostava das damas que ao pôr o pé fora da porta, mostravam serenidades bem esquisitas, cansadas de noites mal dormidas, tinham sempre uma palavra a dizer aos vizinhos e aos fornecedores, parecendo-me sempre que em casa só poderiam encerar e esfregar de sapatos de tacão e que na cozinha tinham todos os electrodomésticos, mesmo a tal torradeira com as torradas a saltar,  como nos maravilhosos anúncios da publicidade americana que desceu até à Europa.
Gostava das senhoras que nunca riam alto só para porem o pé fora da classe social que aparentavam, nem falavam da infância onde apenas havia memórias esfarrapadas.
E daqueles cavalheiros e damas de nariz fino e que nunca falavam de dinheiro porque parecia mal.
A pobreza arrasta(va)-se pelas nossas vielas e avenidas mas as senhoras, quais vidros de Veneza passeavam-se como se tivessem alguma coisa de real.
Lembro-me destas senhoras, rodeadas de naperons, almofadas na sala de visitas, livros românticos na biblioteca e máquinas Singer ou Elna, como de arpas se tratasse.
Andava eu no Liceu e tinha uma amiga que a mãe era costureira e viviam numa zona do Porto, hoje considerada histórica, na altura dava-se outro nome.
A menina vinha quase sempre de táxi para o Liceu. A mãe vivia com um taxista que lhe batia, trabalhava muito mas queria que a sua filha parecesse uma menina com posses e de outra classe social.
A menina era linda e com bons modos, bastante calada, ainda hoje assim é, e quando se tratava de irmos para casa umas das outras à tarde, merendar e fazer os deveres, nunca íamos para a casa da menina, já que ela não convidava.
Um dia insisti, insisti que queria ir a casa dela para pedir à mãe que me fizesse um vestido igual ao dela, já que me tinha dito que tinha sido a mãe que lho fizera, evitando de dizer que era costureira.
Não consegui ir, só muito mais tarde é que descobri o segredo da minha amiga, que mais não era que a vergonha de ser pobre.
Porque me veio à memória esta história?
Porque a mãe da Hercília foi uma mulher  de que me lembro várias vezes, como uma grande senhora, amante de seus filhos e que se sacrificava sempre por eles e muito ao contrário de outras senhoras que conheci nessa época, nas visitas que fazíamos às casas umas das outras. A maioria delas o que queria era aparecer e ser a rainha, nem que fosse do lanche.
Algumas faziam mesmo lembrar a rainha do Sabá. Lembro-me de uma que nos foi mostrar o quarto da filha, cheio de coisas maravilhosas e que tinha um sofã rosa maravilhoso e abria as gavetas dos móveis do quarto e só apareciam chocolates e  bombons misturados com jogos de banhos e outras roupas e coisas assim e eu ia pensando "ai se eu tivesse isto assim lá no quarto, o que não me faziam".
E pronto quisera eu que este escrito se apresentasse apenas por um anúncio de publicidade dos anos 50/60 e até 70, inferido de conversa havida ontem com uma amiga, que modelou a cultura e os costumes das nossas mães, mas a esferográfica levou-me para memórias a sério.
Eram mulheres ardilosas também. Lembro-me duma mãe duma colega que ao interceptar uma carta dirigida ao marido, supostamente duma relação extra-conjugal, escondeu-a  durante 30 anos, entregando-a depois quando soube da morte da senhora que a escreveu.
A vida hoje é uma chalaça posta em funcionamento pelo hábito dos milagres mas antigamente também o era.
Gastavam-se páginas de tinta a descrever as voltas e reviravoltas que se dá numa noite de insónia, hoje dão-se curvas na oralidade do discurso político ou aparentado.
Caminhou-se muito, evoluiu-se muito, mas a espécie humana é a espécie humana e no que a nós, nascidos e criados neste rectângulozito do planeta diz respeito, na essência nunca se chega ao âmago dos problemas, quando se toca no assunto ao de leve, precipitam-se os factos do vi, vi, vi.
Continua-se a pensar com os olhos e quanto a mim, continuo a preferir tirar as personagens dos livros e pô-las a funcionar comigo, como sempre fiz.

4 comentários:

Laços e Rendas de Nós disse...


Belíssimo texto. Uma análise da escura interioridade de quem não foi e não aceita o ter sido.

Beijinho

lenço de papel; cabide de simplicidades disse...

obrigada pela visita e palavras.Bj

GL disse...

Não pude deixar de rir com as senhoras, ufanas e sem pudor, que afirmavam que os seus maridos até em cuecas tinham chique.
Ontem, como hoje, a aparência é o que mais conta.
Abraço.

lenço de papel; cabide de simplicidades disse...

é uma história verdadeira, lembra-me perfeitamente da Dª Capitolina, uma senhora baixinha e gordinha e que se despedia sempre com a mesma frase, eu era criança, mas essa frase ficou-me andando sempre a perguntar a toda a gente o que era ter chique nas cuecas, acabei por saber pela Srª Glória, a empregada interna que fez um esforço por me explicar e eu entender. Tb me rio sempre que à memória me vem a frase da dª Capitolina.