sexta-feira, 10 de janeiro de 2014

TERRITÓRIOS EXPLORADOS

Ontem a felicidade passou por aqui.
Estive à conversa, cerca de 30m com aquela mulher que vende a revista Cais em Stª Catarina. Há anos que lhe compro a revista. Falou de tudo um pouco. Falou das pessoas que lhe puxam pela revista sem a comprarem.
Falamos das pessoas que se mantêm à tona e lutam desesperadamente por isso, referiamo-nos aos ainda bem vestidos que por ali passam.
Claro que lhe dei muito mais do que a revista custa e achei-lhe piada que ela queria ao fim da força, devolver-me uma parte do dinheiro e eu insistia, olhe que eu não sou rica, não preciso dele.
Não é mulher de muitas falas, mas vi-lhe o sorriso naquele rosto marcado pela vida.
No final, disse-me quase sussurrando: soube-me tão bem falar consigo, soube-me melhor do que o dinheiro que me deu, obrigada. Apeteceu-me chorar, mas fiz-me de forte, virei-lhe as costas e despedi-me com um até à próxima.
Se calhar fez-me melhor a mim do que a ela.
Vinha dum almoço com amigos de há longa data que me falavam da vida que está muito mal. Um anunciava-me que não estava em pleno porque lhe deviam milhares de euros e mais à frente consultava o telemóvel a ver quanto tinha ganho em bolsa.
Outro, médico, referia-se às dificuldades actuais como funcionários públicos que somos e da quebra do vencimento, como se eu não soubesse.
Não há dúvida que me correu bem o dia, principalmente porque me encontrei com gente diferente.
Nunca me deu conforto nenhum conversar com gente da mesma "espécie"  em idade, preocupações, sítios frequentados e etcs.
Onde me sinto bem é mesmo com os desfavorecidos da vida, sinto-me peixe na água, mas não numa de caridadezinha barata, era incapaz de ser voluntária nesta área, por exemplo. Gosto de falar de igual para igual, na tal arte do encontro.
Gosto desta gente, não para coleccionar personalidades como se coleccionam cromos em pequenos, mas porque acho que podia ser uma pessoa destas, estou próxima, sinto-me muito próxima.
A vida é uma sucessão de eventos extraordinários e nem sempre os vemos porque estamos distraídos.
Claro que depende da intimidade e da perspectiva. Mas neste caos em que vivemos, com todas as banalidades que ouvimos de línguas escorregadias e lisas, cada vez mais me interesso pelo insólito, em cavalgar a vida com gente interessante.
Ontem ao almoço com amigos, falou-se do país, dos políticos, da política e de muitas outras coisas.
Foi bom e o almoço estava óptimo, mas o que eu gosto mesmo é de estar com a "minha gente", com os que já percorreram corredores escuros e silenciosos e amplos salões desamparados.
Gosto de ver as pessoas a sorrirem com aquele sorriso do coração.
Há dias que correm mesmo bem. Logo ao sair da estação deparei-me com um senhor que não conseguia colocar a coleira à cadelinha dálmata. A cadela atrapalhava-se a andar porque a coleira estava colocada ao contrário. Fui ter com ele e pedi-lhe para recolocar a coleira da cadelinha.
O senhor agradeceu imenso mas a cadelinha lambeu-me a mão, assim começou o meu dia.
Logo a seguir juntou-se a nós um "bêbado" da estação, em estado de sobriedade, que nos queria falar dum cão que lhe tinha falecido há pouco e por quem ele estava de luto e relatava o amor que os unia desde que o tinham abandonado ali mesmo e ele tinha visto o carro a larga-lo.
Estivemos eu e o senhor da cadelinha, que esperava a filha  e ao princípio nem olhava para o sofredor homem de luto pelo cão que tinha partido, a escutar a dor daquele homem, tenho a certeza que fez bem aos três. Perdi um cão, o meu querido sweet o ano passado.
Gastei mais 30m do meu dia, aproveitei-os desta maneira. Claro que ia com uma agenda que não cumpri, nem pela metade, mas a felicidade trespassava os minutos .
Não gosto de ideias feitas.
Não gosto de cadáveres ressuscitados por artes mágicas cumprindo ordens, gosto de saber que o amor existe e o amor esteve presente ontem e cumpriu-se, não por um dos amigos, sentado àquela mesa de restaurante confessar que teve um "fraquinho" por mim em anos que já lá vão, nunca dei fé devo dizer, junto a uma garrafa de bom vinho e em tempo de "confissões" entre amigos. Dizia ele que eu era uma mulher do "caraças" mas absolutamente inacessível. Ri-me e fui rectificar  quantos graus tinha o vinho, ainda hoje lido mal com estas coisas, no entanto, ri-me muito, quase à gargalhada, depois de irmos ao passado e festejarmos o presente com fogo de artifício, que a alegria leva a isso.
Um dos empregados do restaurante disse: hoje   é dia de festa, os srs. drs. juntaram-se todos, e nós   continuávamos com aquela alegria que se conhece quando se juntam amigos, mas a felicidade, a felicidade que não se anuncia com fogo de artifício, essa senti-a no instante em falava com a minha conterrânea, a ex-drogada que vendia a revista Cais e que ficou contente por falar comigo, mulher de poucas palavras, confessava que as pessoas não perdem tempo a falar com ela.
Não nos rimos à gargalhada, mas estivemos felizes por momentos.
Não posso contar isto a toda a gente bloguinho, por isso conto-te a ti que sei que me interpretas o sentimento e não te ris baixinho.

5 comentários:

Helena disse...

Pois é. Há momentos muito especiais...
Beijo.

GL disse...

E assim começo o dia, confirmando aquilo que adivinhava, o porquê de vir até aqui assim que ligo o telemóvel, quase de forma compulsiva: estou com uma igual.
Sei do que fala, sei o que sente, uma alegria genuina que só nos é permitida quando gostamos de gente. Gente de carne e osso, como toda e qualquer criatura, mas gente que vai muito para além disso: gente com alma, gente que não é de "plástico", oca, egocêntrica, que vira a cara porque a incomoda (coitada, que dó me causa!), ver, quer a mulher que vende a Cais, quer aquele que pede a moeda, quer aquele que se aproxima e me diz, num misto de vergonha e coragem, "tenho fome, pode dar-me um pãozito?". Esta também é, e fazendo minhas as suas palavras, a minha gente. Com os nossos pares já não temos nada a aprender. Vivemos bons momentos, gostamos do encontro/reencontro, mas não sentimos aquela alegria genuina, única, que nos proporcionam aqueles para quem uma palavra, um sorriso, fazem a diferença.
Felicito-a pelo seu dia, felicito-me por a ter encontrado.
Estou cansada de gente de "plástico". Tenho fome de pessoas que saibam/pratiquem/vivam o amor.
Obrigada pela partilha.
Abraço.

lenço de papel; cabide de simplicidades disse...

só posso dizer que sabia que havia pontos comuns, senão não perdiam tempo comigo. Um beijo às duas e um bom dia

Laços e Rendas de Nós disse...

Não queria, de maneira nenhuma, cair na costumada expressão «Gostei!», mas, à mediada que ia lendo sentia-me em casa.
Há dias, uma amiga de longa data dizia-me "Estás uma isolada!", porque não quis ir a um encontro de café, onde tudo era previsível, porque estudado - as marcas, os filhos fantásticos e talentosos, as prendas dos maridos, as viagens e as férias...
Eu gosto de ir à praça e ouvir e falar e perceber e projetar-me no outro. Olhar as pessoas como pessoas e não como depósitos de um capital balofo, que se mantém de aparências.

Obrigada, por este texto!

Beijinho

lenço de papel; cabide de simplicidades disse...

que bom, gostei de ter parceiras. às vezes julgamo-nos únicas, isoladas como diz, mas afinal havia outra :), há sempre.
obrigada por ter vindo até aqui.