sábado, 26 de maio de 2012

ANTIGAMENTE

ao correr do pensamento...




Eram as crianças criadas como se fossem inteligentes o que as ia tornar ou depressivas ou intratáveis.
A vergonha e o respeitinho construiam um edifício de resistentes blocos morais que não éticos, à volta das pessoas, esperando que não entrassem em contacto com os desejos e apenas com as ansiedades.
Antigamente havia a angústia de todos os que, para poderem ganhar a vida, são obrigados a perdê-la nos meandros de uma profissão.
Antigamente ninguém falava português nem nas coisas portuguesas e, por essa exacta razão, elas persistiam.
Antigamente os desejos morriam na sombra, frutos maduros esborrachavam-se no chão.
Antigamente havia dores de classe.
Antigamente a vida era gorda, oleosa, mortal, sub-reptícia.
Sabia-se antigamente que não há observações ingénuas.
Antigamente a maioria dos criminosos sentiam-se culpados pelos crimes praticados.
Antigamente fingia-se concordar, simulava-se obediência para depois tratar de compensar a inibição com atitudes temeráveis e escandalosas até.
Antigamente sofria-se a realidade como um sistema de poder. Todos nos impunham o seu sistema de ser, mal educadamente.
Antigamente as relações com o poder eram só para alguns, agora são para quase todos.
Antigamente as pessoas eram desmamadas e na sua grande maioria, sabiam alimentar-se de outras coisas, além do "seio materno" enquanto esperavam, para suportar as ausências que eram muitas.
Antigamente só alguns acreditavam ou diziam acreditar em fenómenos paranormais.
Antigamente sabia-se que inépcias eram as qualidades dos ineptos, dos imbecis, sabia-se distinguir insanidade de sanidade.
Antigamente (1813) o Porto, a minha saudosa e amada terra, tinha uma Planta Redonda, uma imagem simbólica da cidade, realizada com fins militares quando o Porto se achava ocupado pelos ingleses, agora está ocupado por tropas neo-liberais.
Antigamente havia a gente com a idade indefinida dos que trabalham de mais, hoje começam no berço, reformados.
Antigamente havia a super-saturação da miséria.
Antigamente até os comboios chegavam rufantes e cansados.
Antigamente as crianças andavam com o minério às costas que pesava como a puberdade.
Antigamente íamos contentes, colados numa só força.
Antigamente víamos a Lua grávida, seduzida.
Antigamente a nossa vida era uma concha univalve.
Antigamente a maior força de erosão eram os namoros  prolongados que davam casamento.
Antigamente contavam-me rapidamente histórias que não lhes acontecia.
Antigamente eu era muito jovem para compreender os guizos da inteligência. 

2 comentários:

lua vagabunda disse...

isto é um poema... mas eu tenho sempre muito medo dos antigamentes...

lenço de papel; cabide de simplicidades disse...

Não tenhas medo das palavras, nem dos tempos. Vivemos o passado, vivemos o presente e estes vivem-se no futuro. Cá estamos para os enfrentar de peito feito e joelhos atrás. Bj