quarta-feira, 30 de maio de 2012

DESLUMBRAMENTOS

Falo dos deslumbramentos literários e um dos primeiros foi a Morgadinha de Júlio Dinis.
Não vivia na aldeia, sempre pertenci à cidade, fiquei a conhecer a aldeia e integrei-me como personagem no seu livro. Ainda hoje sempre que visito alguma aldeia pela primeira vez entro sempre em terras da Morgadinha.
Júlio Dinis casava sempre os pares no último capítulo, nas aldeias por onde passo, também os jovens se casam cedo. Os adolescentes nas aldeias continuam  só a pensar em casar.
Outro deslumbramento foi quando li, pela primeira vez Camilo Castelo Branco. Não recordo bem se o primeiro romance que li foi "A Queda dum Anjo", se "Amor de Salvação", se as "Vinte Horas de Liteira", sei que duma assentada li quase 20 romances de Camilo porque lá em casa havia muitos livros do autor,  já que a minha mãe o lia muito.
Passei tardes inteirinhas de domingo com Camilo e as suas personagens.
Excluirei aqui os deslumbramentos tidos nessa época, pelos estrangeiros Zola ou Balzac, apenas relembrarei os lusos.
O meu avô dizia  que a Leninha andava no mundo da lua e o meu pai anunciava que já era altura de entrar no realismo e entrei com Eça nesse mundo do realismo, pela mão do meu pai, mas nunca abandonei Camilo.
Mais tarde no Liceu, estudei as correntes literárias e recordo-me da professora, Drª Maria Antónia, saudosa e querida professora, que anos mais tarde percebi ser possuidora duma vasta e sólida cultura clássica, brincar com o romantismo e o realismo. A moda assentava no realismo e Eça era o seu expoente máximo. Camilo era considerado um contador de histórias de faca e alguidar e o meu coração que pendia para o lado de Camilo e a minha cabeça também. Teria 13/14 anos. Então decidi-me, fiquei com Camilo.
Aos 14 anos li o "Crime do Padre Amaro", porque sabendo meu pai desta questão sentimental que corria na aula da professora Maria Antónia e conhecendo as minhas inclinações, ia informando que eu não tinha idade para ler O "Crime do Padre Amaro" porque quando o lesse não teria dúvidas, nessa altura ficaria a saber quem era  Eça na realidade, meu pai era ateu, o que devia influenciar também.
Claro que me apressei a surripiar a famosa obra da biblioteca paterna.
Li  e o meu coração continuou a balancear e, quando a polémica estava ao rubro na sala de aula, resolvi anunciar a minha grande paixão por Camilo, não havia remédio. Nessa altura declarei que tinha lido até "o Crime do Padre Amaro" para melhor decidir. Grande escandaleira provoquei, talvez o  primeiro grande  escândalo da minha vida porque mais tarde tive outro com Nietzsche igualmente de enorme repercussões.
Naquela altura a professora Maria Antónia escreveu no quadro alguns títulos de obras de Eça para eu/nós lermos, se quiséssemos. Claro que as li e mais cliente fiquei de Camilo. Nessa altura acho que a máxima "não há amor como o primeiro"  se fazia sentir.
No fim do ano a  professora falou comigo e depois de me perguntar até à saciedade porque  gostava mais de Camilo do que de Eça, confessou-me que com ela também acontecia o mesmo. Foi uma alegria suprema, não me esqueço dessa altura, parece que tinha ganho uma batalha.
Mas seguiram-se novos deslumbramentos. Vieram os neo-realistas, li tudo o que me aparecia desta corrente. Na época achava que eram os que mais se identificavam com os meus sentires.
Li Urbano Tavares Rodrigues,  já não me recordo se foi "Bastardos do Sol", o primeiro romance que li do autor, porque mais uma vez foi de rajada, é o meu estilo, devo confessar, leio tudo quanto há para ler daquele autor, para ficar a perceber o melhor possível  da sua obra. Mas o escritor neo-realista que  mais gostei foi José Rodrigues Migueis, também não me recordo já se foi "A Escola do Paraíso" o  primeiro romance que li do autor, suponho que sim, porque na minha biblioteca consta mais que um livro com este título, por causa da capa, devo confessar que dava muito valor às capas nessa época e havia algumas que eram pinturas lindas, e também porque me recordo muito bem daquela infância do menino da cidade em que de certa maneira revivi a minha infância e me informava daquilo que eu já sabia é que o país esteve parado durante décadas. Nesse romance a acção descrita vinha do tempo de D. Carlos até ao ano de 1960 e o país não tinha mudado.
Do José Rodrigues Migueis li tudo, foi uma grande paixão, diga-se em abono da verdade.
Os meus deslumbramentos literários iam-se acumulando, nunca abandonei definitivamente os antigos amores, ainda há cerca de meia dúzia de anos ao visitar a casa de Camilo, comprei  uns livros e reacendeu de novo a velha chama e afirmo, sem sombra de dúvida, Camilo Castelo Branco foi um dos grandes, um dos maiores escritores do nosso país.
Descobri a Agustina Bessa-Luís. Nos 1º e 2º livros que li da autora tive alguma dificuldade em entrar no tipo de escrita. Não foi amor à primeira vista, de forma alguma, intrigava-me, era diferente do que até então tinha lido, mas aprendia, aprendia psicologia feminina e quando comecei a comprar todos os anos Agustina na Feira do Livro, percebi claramente o que estava a acontecer, já não passava sem ela.
Aprendo com a Agustina a ser provinciana e a gostar de o ser, para além de muitas outras coisas, aquelas manhas das mulheres que se pressentem, mas se desconhecem a causa, estava lá tudo explicado.
Não me proponho falar neste escrito de autores estrangeiros, senão teria que falar de Machado de Assis, de Nélida Piñon, de Salman Rushie, eu sei lá. Também não quis falar da poesia, porque não vivo sem ela, são livros de cabeceira, quase como a bíblia para os católicos. A poesia sempre me seduziu e seduz. A grande paixão, sem sombra de dúvida foi Camões e os Lusíadas, tenho que confessá-lo. Adorei.
Os meus deslumbramentos foram muitos e variados, mas aqueles que se entranharam em mim, foram os primeiros contadores de histórias que li.
Para mim, os livros sempre foram pequenos tratados de ilusões, mas de ilusões tão verdadeiras que tomo verdadeira consciência de mim, através deles.
Os livros sempre me levaram à rua. Conheci muita gente através das personagens dos livros.
Não consigo dizer se foi a literatura que contaminou a minha vida, se foi ao contrário.
Hoje em dia, posso afirmar que a literatura, a vida real e a poesia copulam entre si.
Sobra-nos real, por isso cortar com a realidade, é esse o contrato que fiz com a realidade e que renovo, sempre que necessário.
Aproveito a experiência da idade, aproveito as frestas, os interstícios, as pequenas rachas por onde a luz encontra um sopro de vida, e esse é sempre na literatura.
Há realidade maior que a literatura? Não conheço.

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